Fragments d'amour



-VAGABUNDA! - O vaso de porcelana arremessado na parede estourou.
- Baixe seu tom comigo! Não sou as putas que você pega na rua.
-Não transfira para mim o seu modo operante. 
-Se assim você diz... Cansei por hoje, Sheyla. Vou dormir no Maurício. - Adriana bateu a porta ao sair.


Era a quinta briga entre o casal em uma semana. O motivo de sempre resumia-se as chegadas, cada vez mais tarde, em casa de Adriana. A justificativa era o fluxo sazonal de shows organizados pela CatEventos já que entre os meses de Maio e Agosto ocorria o Cirque'n Festival. 


As cidades que rodeavam o Capão de São Gerônimo das Mercês tinham em comum a tradição circense. Contam os moradores mais antigos que uma família de cinco irmãos sendo eles: um casal de trapezistas, um domador de feras, uma atiradora de facas e uma mágica brigaram entre si. Cada um se refugiou em uma das cidadelas, constituiu família e fundou um circo nunca deixando o legado do Gran Cirque L'Amour Lyon findar. Com o aproximar da velhice e por insistência das famílias, os irmãos retomaram a amizade e, para celebrar os laços, criaram o Cirque'n Festival. 


Inicialmente seriam poucos dias de mostra circense de cada uma das famílias. Décadas depois, o festival ganhou proporções e passou a atrair turistas e visibilidade para o cinturão Geronino, como eram conhecidas as cidade de São Abelardo, Santa Bernadete, São Carlito, São Demétrio e Santa Eleonora das Mercês. Sendo esta última, a anfitriã do festival desse ano. 


Sheyla e Adriana se conheceram em uma das edições da festa. Foi atração a primeira vista e desde então nao tinham se largado. Embora mantivesse sua residência em Santa Eleonora, a empresa de Adriana era em São Carlito. De carro, o trajeto durava uma hora. Sheyla era herdeira de uma rede de pousadas e administrava a sede. 


Por mais que Adriana passasse mais tempo na casa da outra o que na sua, nunca quis morar junto. Defendia sua individualidade e espaço próprio. No fundo, ambas sabiam que o motivo ia além dos pontos apresentados. Até chegar na porta de seu amigo e sócio, a promotora de eventos assobiava um trecho da canção que tocava na rádio. A dupla sertaneja em questão, faria parte do quadro de shows. Estacionou o carro em frente ao portão do amigo e desceu com uma pequena mochila. Tirou a chave do bolso e entrou na casa. O aroma adocicado indicava onde encontrar o rapaz. Deixou a mochila no sofá e foi até a cozinha.


-Querido, cheguei.
-Ah! O amor... Brigou de novo, foi?! _ perguntou enquanto mexia o brigadeiro na panela.
-Então... _ abriu uma latinha  cerveja.
-Como você aguenta essa vida?! 
-Tem uma hora que cansa. 
-Na hora da briga, decerto. Quando está no bem e bom ninguém cansa.
-É... Mais ou menos por aí. 


Os amigos sorriram e conversaram sobre diversos assuntos enquanto esperavam o doce esfriar. Olhando a chuva caindo pela janela do quarto de hóspedes, a mulher rememorava o último ano de sua vida. O amigo tinha razão. Precisava tomar uma decisão para seu bem estar físico e mental. Viu o dia clarear, sentada na cama. Tomou uma ducha, se arrumou, escreveu um bilhete agradecendo a hospedagem e saiu. 


Quando virava o carro na esquina da casa de Sheyla a viu abrindo o portão para que alguém saísse. Viu sua namorada ser prensada no muro e beijada com desejo até conseguir soltar-se e a outra partir. Uma lágrima desceu de seus olhos. Por mais que desconfiasse, jamais pensou que se confirmaria. Poderia alarmar o flagrante e exigir satisfação, poderia fazer tantas e tantas coisas, tomar todas as atitudes cabíveis e... Tudo o que Adriana fez foi chorar. Todos os momentos felizes e planos em conjunto e juras de amor diluiram-se mediante aquela cena. Passou tão rápido pela porta a outra que seu carro não foi reconhecido. Saiu da cidade sem rumo e quase provocou um acidente na estrada. 


Freou bruscamente evitando a colisão com outro automóvel. Colocou a cabeça sobre as mãos no volante e chorou tanto que era possível ver seu corpo dando pequenos sobressaltos. A mulher que estava no outro veículo desceu rapidamente. Abriu a porta e ajudou-a a sair. Aos poucos, Adriana se acalmava. Contou àquela estranha tudo o que lhe ocorreu nas últimas 24 horas. Não sabia o porquê, mas confiou. 


Luciana, a condutora do outro veículo, a convenceu ir com ela para São Carlito. Em meio a besteiras e a cantoria, propositalmente, desafinada, alguns sorrisos foram conquistados.  Novos sentimentos estavam sendo plantados em um terreno que, se bem cuidado, renderia belos frutos. De plantio, paciência, cuidado e fruto, a moça entendia. Era a responsável pelas belas flores que margeavam o circo de sua família.


Muitos meses depois...


-Alô! _ uma Adriana sonolenta atendeu.

- Dri, só me escuta... Por favor. Eu... eu te amo... Eu sei que errei contigo, mas eu... eu juro que vou mudar.

- ...

- Dri, fala alguma coisa.

- Eu te amei muito. Ao ponto de aguentar seus gritos e desvarios. E eu achei que você me amava. Achei que o que eu recebia era amor. Mas não é. E eu precisei encontrar alguém que me ensinasse o que era amar e como se ama para entender. Você não me ama. Você só não quer  ter a sensação de que me perdeu. 

- Olha... Eu sei que andaram te falando umas coisas aí... Eu... Volta pra mim. Eu faço o que você quiser. Eu...

- Não posso. Não nascemos para ser. Por favor, não me ligue mais. Esse é meu adeus.

 


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