Conto - Lembranças


Sipnose

Quando já não há mais esperanças sobra-lhe apenas uma coisa a fazer... escrever.


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Rabiscar.
Rasurar.
Rabiscar.
Rasurar.

Essa é minha rotina. Todo dia, o dia todo.

Rabiscar.
Rasurar.

Você deve estar pensando que sou louca. Não te culpo, eu também pensaria isso. Mas não. A loucura não é uma das minhas qualidades, nem defeitos. Minha doença é outra, incurável e incontrolável. Sou apenas um alguém que escreve algo no calor do momento e rasura quando se lembra de que de nada adiantará as palavras.

Nome? Eu tenho, mas não o pronuncio a tanto tempo que quase o esqueci. Ma... delaine. Madelaine?! É. Madelaine. Ou algo próximo disso. Meu pai que escolheu. Ele era fã de filmes franceses e achava bonito como o nome soava. Ele explicou a moça do cartório como se escrevia e bem provável que ela errou, mas ele sempre me chamou da forma que ouvia nos filmes franceses.

Mãe eu tive, mas não a conheci. Quando eu tinha pouco mais de um ano ela nos deixou. Meu pai foi quem mais sofreu ele a amava com loucura. Sempre senti falta de carinho de mãe e tentei suprir com outras mulheres. Claro que não foi de forma maternal se é que me entendem. Muitas passaram pela minha vida e passei pela cama de mais da metade delas. Nunca fui santa e sexo é uma das poucas coisas que sempre me agradou até conhecer ela, a mulher da minha vida.

A pele era tão branca quanto papel, os olhos eram duas amêndoas e o cabelo negro como a noite sem luar. Seu nome? Não direi para não macular sua imagem ou reputação. Não sei quem me lê. Essa moça me mostrou o mundo de outra forma, supriu aquela carência infinita que eu sentia e me mostrou que sexo sem sentimento é apenas satisfação dos corpos. O bom era fazer amor, ser amado e amar.

Ah que saudade do perfume de sândalo que ela usava. Saudade é a palavra que define o resto dos meus dias. Eu a amei. Ainda a amo, mas não podia deixá-la em meu mundo insano. Ela não merecia isso. Ela merecia o mundo. E eu não podia lhe dar esse mundo. E como dizia aquele apostolo “O amor é abnegado. Tudo crê tudo suporta”.

Doeu. Ainda dói. Negar o que lhe é ofertado de bom grado. Ela era tão boa, amável mesmo quando eu não me controlava e tinha meus acessos e crises e ciúmes idiotas. Eu fui sortuda por ter seu amor e azarada por perdê-lo. Sinto o cheiro do seu perfume no ar, mas sei que é uma alucinação. Dizem que quando a morte nos ronda passamos a recordar de momentos importantes. Creio que os únicos momentos que considerei importante foram aqueles nos quais estava com ela.

Ela foi embora. Foi ser feliz. Eu pedi que fizesse isso por mim. Foi burrice eu sei. Ela poderia estar aqui agora ao meu lado ou poderíamos estar em alguma casinha só nós duas esperando o inevitável. Não queria ver a dor e a tristeza em seus olhos. Doeria muito mais.

Ao longo dos anos me acostumei com os “bips” e a solidão. As paredes são brancas, tem uma televisão para eu me distrair onde assisto desenhos e a cada par ou trinca de horas entra uma enfermeira para verificar como estou, trazer remédios e refeições. Sinto meu corpo perdendo suas forças e em segredo rezo para que aconteça logo. Só quero descansar. Preciso descansar. Enquanto isso não acontece continuo meu passatempo.

Rabiscar.
Rasurar.
Rabiscar.
Rasurar.

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