Arranjo - Capitulo VII




Quando estamos apaixonados tendemos a ignorar fatos, muitas vezes gritantes, no que toca ao caráter e índole, principalmente. Somos vendados por nós mesmos, e de uma maneira tão forte que é quase impossível que outra pessoa consiga romper esses laços.

Olhava a mulher por quem nutria o sentimento pouco nobre da inveja em minha frente a oferecer ajuda e estadia em sua residência no período de minha convalescença. Não havia a mínima pretensão de aceitar, mas ela citou a ex ou atual esposa como um dos motivos para que eu não recusasse.

Também tinha o fato de não poder fazer muitas coisas sem ajuda, já que o lado mais acidentado havia sido o esquerdo e por obra e graça do divino, sou canhota. Fechei os olhos em conflito interno, pois aceitar me soaria como uma sessão masoquista sem prazo de expiração.


- Tudo bem. Aceito. Mas com uma condição.
- Sim?!
- No período em que eu permanecer em sua residência arcarei com os custos das medicações e alimentos.
- Mas...
- Sem "mas". Caso contrário fico em meu sítio.

Sorri internamente ao ver o princípio de um bico infantil. Próprio de quem não aceita ser contrariado. Ela tinha traços expressivos e transparentes aos meus olhos. Uma sobrancelha sempre arqueada, o rosto milimetricamente esculpido por algum grego e o timbre da voz era uma escala musical em perfeita afinação. Não era difícil compreender porque Katrina havia se apaixonado por ela. Além da beleza exterior tinha a interior. A sensibilidade, a generosidade, o senso de justiça e tantos outros traços da sua personalidade que me recusei a conhecer.


- Certo. Será nos seus termos.
- Obrigada. Não gostaria de me sentir um estorvo. __ O sono começava a pesar, mas antes que adormecesse lembrei de perguntar. - Como você soube?
- Um policial ligou para o número de Katrina e informou que passaram esse contato.

Na ocasião em que comprei meu atual aparelho celular, coloquei como contato emergencial o número de Ingrid, depois de muitas reclamações sobre eu não confiar nela e minha displicência com relação a esses aparelhos. Mas a verdade é que não sou uma pessoa tecnológica. Devo usá-lo por conta do trabalho, mas ainda prefiro conversas presenciais com olhos nos olhos.

Repassava tudo que vivemos e a insistente cobrança acerca de sentimentos e confiança. No momento em que se fez necessário a presença dela houve uma atitude egoísta. Ela lhe virou as costas e "passou a bola" para outra pessoa. Decepção me definia.


"(...) Vou rebuscando fundo nas minhas memórias. Pra riscar você da minha história."

Ingrid mexia em algumas caixas que escondia em um fundo falso no guarda-roupas. Retirou algumas fotos de uma adolescente loira em meio a um grupinho. A segunda foto era dessa mesma moça alguns anos depois, nas outras ela estava ao lado de Dom e Helena. Haviam recortes de jornal aonde noticiavam o casamento com a compositora e uma página de revista onde falava brevemente sobre o divórcio e alguns rumores.

Um diário mais ao fundo era o que queria retirar. Antes que folheasse as páginas uma foto caiu. Uma menina gordinha e de cabelos mal arrumados, óculos de grau e aparelho dentário sorria. Algumas lágrimas caíram sobre a foto e, na raiva tencionou rasgá-la, mas antes que o fizesse parou. Guardou tudo dentro da caixa e a devolveu ao seu lugar. Olhou-se no espelho antes de repetir mais uma vez para si.

- "Os fins justificam os meios."

Ela tinha doze anos e todos os dias era a mesma tortura ir para o colégio. O pai a deixava com um beijo na testa e um "eu te amo" todas as manhãs. Assim que passava dos portões, seus passos eram acompanhados por uma garota e seu grupinho. Ela sempre fazia o mesmo ritual. Deixava a mochila na sala e ia a biblioteca escolher um livro para tentar fugir da dura realidade mergulhando na literatura. Assim que o sinal tocava, ela voltava pelos corredores para a sala. Assistia e participava das aulas e atividades até o horário do recreio. A tortura começava.

A gangue dos populares a arrastava para uma sala não utilizada e a ameaçavam de toda forma. Denegriam sua imagem com palavras horríveis e a batiam. Todos os dias durante seis anos ela passou por sessões diárias de bullying e torturas psicológicas. Quando ela começou a entender sobre sua sexualidade e se descobriu gostando de garotas foi pior, porque sua primeira paixão era justamente a garota mais popular e, que para seu azar, era namorada do seu agressor.

Um trabalho em grupo e uma possível aproximação deixou-a exultante. A garota parecia querer tornar-se sua amiga. Lego engano. Era mais uma das armadilhas do grupinho e a deixou de maneira tão envergonhada e suja que não mais queria ver ninguém. O ódio de ter sido ludibriada de tal forma fez com que jurasse não descansar enquanto todos não pagassem pelo mal que a fizeram.


"Você foi a maior das minhas amarguras e vive até hoje na minha loucura..."
Notas finais:
Crédito musical: Memórias - Fafá de Belém

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