Conto - A História de Mais Uma

 



O terreiro que Katana frequentava já estava arrumado para as festividades. Para quem não conhecia as tradições e particularidades daquela casa poderia achar estranho, mas para ela, depois de anos, era como um dia qualquer. 

A anfitriã era de poucas exigências, dentre elas, os trajes deveriam ser na cor púrpura. Era a cor oficial de suas recepções. Outra ordem era que o número de convidados não deveriam passar de trinta e seis, incluindo os filhos da casa. E estranhos jamais eram bem-vindos, com raríssimas exceções. E essa noite era uma.

O primeiro dia do mês de Novembro é comemorado o Dia de Todos os Santos. Um portal espiritual é aberto na noite de 31 de outubro e fecha com os primeiros raios solares do dia 3 de novembro. Vivos e mortos, entidades variadas e espíritos sem luz habitando o mesmo plano.

Do lado oposto da cidade, Adelaide tentava convencer Elis a acompanhá-la ao terreiro. Dedé sabia que o medo de sua irmã era que Sandoval, o ex-marido agressivo, tivesse posto seus olheiros atrás dela. Mas em seu íntimo, algo dizia que Elis precisava ir a essa festa.


-Vamos?! Você sabe que lá é entrada controlada. Você já viu que meu padrinho contrata segurança privada e tudo. 

- Eu sei! Eu sei, tá legal?! Mas... Eu tenho medo, caramba.

- Qual é o seu medo?

- Dela reaparecer. Anos atrás ela disse que quando chegasse a hora, iria me panhar.

- Tem quase vinte anos isso. Se não foi antes, não seria agora. Ou seria?! Eu acho que é frescura sua. Vamos. Nada vai acontecer e você vai ver.


Pegaram a mochila que haviam organizado, apagaram as luzes do pequeno apartamento e desceram, assim que o motorista chamado por aplicativo enviou a mensagem que havia chegado.

Em um bar em frente ao prédio, um homem olhava as irmãs saírem. Atrás dele, uma áurea negra se alimentava da íra. Um casal estava sentado bebendo vinho barato e observando o homem. O jovem senhor chamou o garçom e pagou a conta. A mulher deu uma última tragada antes de aceitar a mão que lhe era ofertada e juntos seguirem pelas ruas.

O badalar do sino anunciava nas horas. Quase todos já haviam chegado e Luiz já estava pronto para abrir a noite. Os batuqueiros em seus lugares, os médiuns de um lado do espaço e os assistentes do outro. Katana estava terminando seu banho quando escutou aquela gargalhada, outrora distante começar a se aproximar. Ela estava chegando. Enxugou o corpo, vestiu uma saia branca de seda e uma blusa de algodão. Os pés descalços e no pescoço apenas o pentagrama, em uma gargantilha de prata, que sempre lhe acompanhou.

Penteou os cabelos platinados que atualmente chegavam o meio das costas. Fez uma trança e abriu a porta em direção ao pátio. Passeou os olhos por todos que ali estavam. Algumas médiuns mais antigas da casa lhe olhavam com respeito, outras com respeito e admiração. Adelaide já estava ao seu lado. Ela era a responsável pela louvação em homenagem a anfitriã e havia uma jovem sentada em um canto. Olhar amedrontado, rosto ilegível e expressão sisuda. Atrás dela, havia uma bela cigana. De trajes vermelhos  e moedas douradas penduradas, pulseiras e anéis, um pandeiro e um leque nas mãos. 

Voltou seus olhos para Luiz que já havia contado a história dessa moça como ele carinhosamente a chamava. Adelaide segurou em sua mão. Entre cumprimentar e afirmar que estava ali, começou a falar.


-Eu andei por dias tristes, ô mulher, por sete dias eu passei. O meu coração está doendo, mulher. Fui fraca e me apaixonei. Venha atender o meu pedido, ô mulher. Gira essa saia e vem me ver. Leva minha dor pra encruzilhada e me faça voltar a sorrir. Pois chorei como uma criança, ô mulher. Chorei por quem nunca me amou. Por isso, te peço, minha amiga, me traga uma rosa, um sorriso e o amor.


Os tambores ressoavam de maneira singular e não houve esse, que não sentisse a derme arrepiar, que não se embriagasse com o perfume que surgiu no ar e não se encantasse com a gargalhada que ecoou no ar. Adelaide ajudou a moça a sentar-se em uma cadeira posta ali para ela.

Antes de aceitar o cigarro que lhe era oferecido, ela pediu que chamassem a jovem encolhida entre a parede e a pilastra; Elis. Em vinte passos a distância entre elas se encerrava, mas para Elis pareciam o triplo. O corpo pesava, as terminações nervosas palpitação, as mãos transportavam e quem as tocasse, sentiria o frio cortante. Ao parar em frente a anfitriã, Elis fixou o olhar dentro das esmeraldas que lhe fitavam e sorriu, pela primeira vez no dia.

Recebeu de bom grado a taça de Pinoir que lhe estenderam e aceitou brindar com a dona da festa. Sem pronunciar uma palavra. A impressão que tinha era a de estar sendo desvendada. A moça, com o sotaque característico, começou a cantar.


 - Vou te contar minha história porque já conheço a tua. Muitas luas atrás, cai de amores por um perna de calça. Parecia um príncipe, me tratava bem até o dia em que dele emprenhei. Me jogou na sarjeta como se fosse uma prostituta e aquela amiga que a ele me apresentou, me virou as costas e roubou o meu amor. Antes vivia caída, marafando pela rua. Desilusão, amor, traição nas amizades, como é triste ajudar e ser tratado na falsidade. Eis que então a conheci e tudo mudou. Me livrou da falsa amiga e me deu um novo amor. Uma cigana vestindo vermelho e com uma rosa na mão me tirou da lama onde estava. Me deu um teto, carinho e um lar. O bacurí acabei perdendo. Seria só um filho sem pai e com uma sina. Fui muito grata a ela. Por isso, Moça Cigana, venha a mim, aqui louvar e por toda sua vida o que pedir, eu vou te dar. Dona Cigana é fiel, é ouro que cai do céu. Moça Cigana é minha vida, ela me pegou no colo e curou minhas feridas. Tire da cabeça que esse perna de calça vai conseguir te fazer mal. Você tem proteção, minha menina. 


A anfitriã enxugou a lágrima solitária que descia pelo rosto de Elis. Abraçaram-se. Um abraço de reencontro, de amigas que há anos não se viam. E a festa verdadeiramente começou. Outras entidades incorporaram. Muita bebida e comida, palmas e cantigas. Elis se esqueceu daquilo que a afligia fosse o medo do reaparecimento de Sandoval ou fosse da sua própria mediunidade que estava prestes a aflorar. Se permitiu sorrir e antes da anfitriã entregar a noite aos cuidados de seu companheiro e permitir que sua médium pudesse participar dos festejos, tirou um último ponto, que em seu refrão dizia: 


- Amor, amor, amor. Amor é uma palavra pra quem sabe dar valor.


O que Elis não sabia, era que naquele instante, o ex estava sendo emboscado por um grupo de ladrões e sua alma estava prestes a desencarnar. Naquela noite, a cigana que a acompanhava não incorporaria, mas daria os primeiros passos para que a jovem pudesse compreender que ela era uma peça fundamental no tabuleiro do universo. Seria naquela noite também que seu coração voltaria a palpitar. Dessa vez por uma mulher de cabelos platinados, voz mansa e sabedoria. Mas essa história é para um outro dia. Quem sabe uma outra hora.

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