Vida sem Glamour - Relato de um Jovem Trans - Parte I

 


O Brasil é o país que mais mata LGBTs, de acordo com o levantamento anual realizado pelo GGB (Grupo Gay da Bahia). E hoje, 29 de Janeiro é Dia Nacional da Visibilidade Transexual.  

"O termo trans é utilizado para se referir a uma pessoa que não se identifica com o gênero ao qual foi designado em seu nascimento.

Quando nascemos, nossos gêneros são determinados pelo nosso sexo. Assim, uma pessoa que nasce com um pênis é considerada como um homem e uma pessoa que nasce com uma vagina, como uma mulher. Contudo, algumas pessoas percebem que se identificam com o outro gênero e passam a viver como assim desejam e se sentem melhor consigo mesmas.

Dessa forma, podemos utilizar “mulher trans” para uma pessoa que tem o sexo biológico masculino, mas se entende como uma figura feminina. Já o termo “homem trans” é indicado para tratar uma pessoa que seu sexo biológico é feminino, mas se identifica com uma imagem pessoal masculina.

Pensando no significado etimológico, o prefixo trans- significa “além de”, “para além de”, “o outro lado” ou “o lado oposto”. O termo é utilizado como um “termo guarda-chuva” e se refere a todas as pessoas com identidades trans: transexuais, transgêneros, travestis, pessoas não binárias, etc."

(Site Transcendemos)

Há relatos e entrevistas que mostram que, no Brasil, desde o período  conhecido como Regime militar, os primeiros homens e mulheres Transexuais que fizeram todo o processo vigente da época para tratamento, foram duramente perseguidos. E até hoje ainda são. Naquele tempo, a justificativa era manter a ordem cristã, moral e bons costumes. Hoje entende -se como homofobia. 

Quando o tema "Transexualidade" começou a surgir nas telas de cinema, o final era sempre trágico. Um bom exemplo é o drama de longa-metragem Boys Dont Cry. E refletindo sobre o preconceito, a intolerância, o desrespeito, o silenciamento e invisibilidade desse público, trouxe um pequeno relato de um Homem Trans. Ele, assim como a grande maioria, passou por inúmeras situações até chegar no ponto em que permanece e encontrou ao longo de sua jornada, pessoas valiosas. Conhecê-lo e saber de sua história, me emocionei e me sensibilizar para coisas que talvez pudessem ser besteira para mim, mas para ele, cada pequena conquista foi motivo de comemoração. 

A pedido do mesmo, ele não será identificado. 

Parte I


"INFÂNCIA 


Algumas fotos que encontrei uma vez no álbum de fotos aparecem eu usando sandália “masculina”, isso com uns 3 ou 4 anos de idade. Quando perguntei sobre a sandália apenas a minha família sempre falou que eu gostava só de sandália “masculina”. Como eu não me lembro de tudo que passei com essa idade, acaba que não sei se era apenas um simples gosto como de qualquer criança que não entende nada sobre as coisas.

Desde criança sempre gostei das coisas que a sociedade gosta de diferencia sendo de “menino” ou “menina”, eu nunca liguei para o que as pessoas falavam, só a minha mãe que vivia falando demais sobre isso.

Uma parte principal da minha infância que sempre lembro é quando eu tinha uns 7 anos de idade, teve um dia que eu queria um carrinho policial, pois o meu irmão que é mais novo que eu tinha ganhado vários carrinhos militares. A minha mãe não queria comprar pra mim, mas o meu avô deu dinheiro para a minha mãe comprar carrinhos tanto pra mim como para o meu irmão, ela simplesmente comprou mais para o meu irmão e só me deu um carrinho policial, ela dizia que o brinquedo era “coisa de menino”. Naquele tempo não compreendia muito o que estava acontecendo, pois uma criança é um ser puro que não compreende direito as coisas que a sociedade impõe. 


ADOLESCÊNCIA 


Com uns 10 anos de idade o meu corpo está iniciando as mudanças como qualquer outro adolescente, mas com 12 anos de idade estava começando a desenvolver os seios e eu não compreendia o motivo de só em mim desenvolver e no meu irmão não. Isso me incomodava, pois eu não poderia ficar mais sem camisa e minha mãe vivia mandando eu usar camisa. Também com essa idade eu não gostava do meu nome feminino, eu tinha maior raiva quando alguém falava e nem gostava que as professoras pronunciassem.

Nessa idade eu sempre tive que aceitar as roupas que a minha mãe comprova pra mim, mesmo eu odiando. Ela tentava fazer eu ser uma cópia dela, me vestia parecendo que estava escolhendo roupa para uma boneca. Toda vez quando ia ao shopping sempre tive que ficar na seção “feminina”, eu olhava de longe as roupas da seção “masculina”, a roupa que sempre amei olhar era roupa social masculina.

Também com essa idade eu era um adolescente “fofinho”, minha mãe vivia reclamando dizendo que eu estava gordo e precisava emagrecer. Eu sofria com as palavras que ela usava nesse tempo. Ela chegou me levar várias vezes ao médico por causa disso, até que uma vez a médica disse que eu era fofinho por causa da genética da minha família e não por causa da alimentação. Foi nesse tempo que comecei amar salada, pois eu tentava emagrecer e não adiantava.

Foi também com essa idade que acabei sentido atração por uma vizinha, eu não entendia o motivo daquela sensação, apenas ficava com vergonha e admirava a beleza e o jeito dela. Quando estava perto de alguém da minha família e essa vizinha passava na rua, eu apenas tentava não olhar. 

Desde essa idade eu nunca gostei de tirar fotos, eu olhava para a foto e via apenas “uma estranha”, ninguém compreendia deu nunca gostar de bater foto. Também não gostava de me olhar no espelho, pois eu via a imagem de “uma estranha”, eu tentava olhar bem no fundo para tentar ver quem eu era, mas a única coisa que sempre vinha na minha mente era a imagem deu de barba. Eu ficava parado na frente do espelho e pensava “será se eu tivesse de barbar iria combinar comigo e de cabelo curto.” Eu sempre pensava na barba e tentava idealizar na minha mente um garoto, eu quando fazia isso depois de alguns minutos pensava que estava doido, por pensar isso. 

Aos 13 anos acabou aparecendo pela primeira vez aquele período de mulher a “menstruação”, eu simplesmente não estava compreendendo o que estava acontecendo, chamei a minha mãe naquele momento e ela não me explicou direito, minha mãe falou para a minha tia sobre o que aconteceu e minha tia ficou feliz dizendo que eu já era “mocinha”. Eu apenas olhava para o rosto da minha tia sem saber nada o que ela estava dizendo. Eu nunca sentir na vida uma cólica e nada, apenas esses dias mal duravam uns 3 dias. 

Nessa idade aconteceu uma festa de casamento da minha prima em um clube, mesmo eu não gostando de ir para festas que acontecia na minha família acabava que sempre era obrigado a ir. Nesse dia acabei me encantando por uma das minhas primas, era uma prima que o meu tio tinha adotado faz alguns anos. Fiquei admirado pela beleza dela, mas eu sempre fazia de tudo nesse dia para não olhar pra ela. A maioria das pessoas nesse dia acabaram se divertindo na piscina, eu não sentia vontade de entrar na piscina, pois eu teria que usar “biquini” ou “maiô”, essas coisas eu odiava, eu esperei até quase no final da festa para poder entrar na piscina de bermuda e camisa. 

Aos 14 anos de idade resolvi fazer um cursinho para fazer a prova do concurso do IF (Instituto Federal), os poucos amigos da escola também faziam, eu fiz amizades no cursinho, mas sempre fui muito na minha. Ocorreu que nesse ano não passei no concurso e tive que continuar na mesma escola. Mas uma amiga passou e quando ela foi na escola pegar uns documentos acabei conversando com ela. Eu sempre via ela pelo cursinho e foi quando percebi que estava gostando dela e eu não aceitava esse sentimento. Até que um dia eu resolvi contar pra ela que estava afim dela, fui acompanhando-a até a casa dela, chegou na frente da casa dela eu disse que era por ela que estava apaixonado, ela não falou nada e ficou calada, eu apenas fui embora, sempre tentei conversar com ela e ela sempre falava que estava ocupada. 

Fiquei alguns meses muito triste, sem vontade de comer ou estudar ou conversar com alguém. Quando isso aconteceu eu tinha voltado a fazer cursinho, os meus amigos perceberam que eu estava estranho, passei meses assim até que eu resolvi acordar para o mundo real, comecei a estudar bastante, porque queria passar e ficar na mesma instituição que a garota, mas saiu o edital e eu percebi que se eu passasse iria acabar estudando no mesmo turno que ela e refletir que se ela não queria conversar nunca comigo então eu não iria atrapalhar a vida dela, quando chegou o dia da prova eu vi que iria passar, pois estava preparado e por causa de não atrapalhar a vida da moça acabei marcando todas as questões erradas no gabarito. 

No dia do resultado eu sabia que não iria passar, mas o que me surpreendeu foi que a maioria das pessoas que eu pensava que eram meus amigos na verdade não eram, falaram demais mal de mim e estavam torcendo para eu não ter passado. Acabou que só quem sabia da verdade eram duas amigas minhas. Nesse momento quando elas falaram tudo o que ocorreu, eu não conseguir acreditar e fiquei com raiva e magoado. Foi nesse dia que eu aprendi a não confiar em ninguém e não chamar de amigo qualquer pessoa, me tornei uma nova pessoa nesse dia que seria forte para tudo e enfrentaria o mundo como ele é realmente. 

Resolvi fazer o cursinho pela terceira vez e ninguém me apoiava mais e nem a minha própria mãe, todos pensavam que eu era uma fracassado sem saberem da verdade. Minha mãe não queria mais pagar o meu cursinho, então eu estudei muito para o concurso de bolsa do cursinho e fui fazer escondido, como eu era menor de idade a moça do cursinho ligou para a minha mãe e avisou que eu tinha ganhado a bolsa integral, foi quando a minha mãe soube que eu tinha ido escondido fazer o concurso de bolsa e me deixou fazer o cursinho de novo e me matriculou. 

Mesmo sabendo que boa parte das pessoas que falaram mal de mim não tinham passado no concurso e eles já estavam estudando de tarde no cursinho há 2 meses, como eu tinha ganhado a bolsa integral em umas das provas então voltei a fazer cursinho mesmo tendo começado atrasado um pouco. No dia que eu entrei na sala e eles todos se espantaram, pois pensaram que eu tinha desistido, olhei para a cara deles de assustados e encarei e sorri, pois eles não sabiam que eu já estava ciente de quem eles realmente eram. 

Eu estudava toda tarde com eles, mas o ambiente da sala era pesado, uma energia negativa, eu sabia que era por causa dessas pessoas, mas eu tentava mesmo assim focar nos estudos. Até que saiu um concurso para uma ETEC (Escola Técnica Estadual), ninguém sabia que existia esse tipo de escola e só focavam no IF. Resolvi fazer para sair da minha escola, pois eu já estava para baixo por causa que os meus colegas sempre falavam o nome da garota que eu gostava, sem eles saberem que eu gostava dela. 

Eu fiz o concurso é quase fechei a prova, fiquei feliz que tinha passado e isso me deu uma motivação. Por causa disso pode trocar de escola e passar a estudar a tarde na ETEC e com isso troquei o turno do cursinho para o turno da manhã, foi a melhor coisa que eu fiz, pois não iria mais ver direto as pessoas que falavam mal de mim e nem saber da garota, eu fiz novos amigos no cursinho. Até que um dia teve uma moça que tinha falado mal de mim e ela resolveu ir de manhã estudar, quando eu a vi sabia que ela estava lá para saber se eu realmente ainda continuava estudando lá, eu peguei me levantei e fui até ela, quando cheguei perto dela eu falei que já sabia da situação que ela e todos tinham falado mal de mim, mas eu sabia que naquele ano iria passar no concurso do IF, mas já ela eu não sabia se iria passar e bati no braço da cadeira e fui embora, ela ficou mordida, mas o recado eu já tinha dado e deixado claro. 

Quando teve o concurso do IF eu acabei passando e era no curso mais concorrido, no dia da matricula encontrei a moça a qual eu tinha avisado que iria passar, ela tinha passado e estava mordida por ver que eu tinha passado, eu sorria muito olhando para a cara dela. Eu estudava no IF de manhã e na ETEC de tarde, todos os dois técnicos com ensino médio, eu poderia fazer os dois porque um é instituto e o outro é escola. 

Pensei que teria uma paz em relação a essas pessoas que não gostavam de mim, mas eu vivi o inferno dentro do IF, pois eles continuaram falando mal que acabou que toda a coordenação do meu curso pensava que eu não prestava e era um fracassado. Tentei ir para outra turma, mesmo sabendo que iria repetir de ano e continuava a mesma coisa em relação a eles falarem mal. Mas eu conseguia fazer amigos em outros cursos e ser feliz com eles. Sobre a garota que eu gostava via ela raramente pelo IF, mas teve um dia que vi ela junto com o namorado e ela o beijou na minha frente e olhando pra mim. Fiquei com o coração em pedaços. Nesse tempo eu pensava que era “lesbica”, pois eu gostava somente de mulheres e cheguei a conversar com duas amigas sobre o que estava acontecendo, elas falaram que eu iria gosta de outra moça e era para eu continuar focado nos estudos.

Com 17 anos, isso faltando uma semana para os meus 18 anos acabei conhecendo uma moça e fui para a casa dela, como a mãe dela tinha saído e deixado a gente sozinho acabei não deixando ela sozinha e esperando até que a mãe dela voltasse e já era mais de 23 horas, eu sabia que já estava ferrado com a minha mãe, pois eu sempre chegava cedo em casa. 

Quando eu cheguei na rua de casa a minha mãe estava na parada me esperando com muita raiva, ficou batendo na minha cabeça e costa até eu chegar em casa, quando eu cheguei em casa já era umas 02:00 horas da manhã e estavam acordados o meu irmão, avó e tia. Até que eu me virei para a minha avó e falei que iria falar a verdade, pois ela já sabia que eu gostava de mulher, pois eu tinha contado pra ela no dia do meu aniversario anos atras e o meu pai já sabia também, pois contei pra ele no dia dos pais, isso anos atras quando ele resolveu passar pela primeira vez o dia dos pais aqui onde eu moro. Pelo jeito é normal eu sempre contar algo em data comemorativa ou perto kkkkk....

A minha mãe continuava perguntando onde eu estava até que a minha avó falou na frente de todo mundo que eu estava na casa de uma garota, mas minha mãe não entendeu e continuou perguntando e minha avó falou que eu gostava de mulher, foi quando todos se assustaram e minha mãe ficou com muita raiva, o meu irmão falou que a vida era minha então eu decidia quem eu ficava ou namorava, mesmo assim todos estavam com raiva. Minha mãe apenas falou que eu teria que a partir daquele dia chegar em casa as 18h, eu tentei falar pra ela que não dava, pois, as minhas aulas terminavam as 18h20 e as vezes até 19h. Até eu chegar em casa seria tarde, pois a escola era longe e só tinha um único ônibus que passava perto, isso na ETEC que era a tarde, acabava que chegava em casa umas 20h30 ou 21h, ela não compreendeu. Ela passou 2 ou 3 meses sem falar comigo desde esse tempo e eu tive que toda vez sair da ETEC umas 17h30 para tentar chegar pelo menos 18h30 em casa, eu perdia aula e os meus amigos não sabiam direito o motivo deu sempre ter que sair cedo das aulas e eu explicava que tinha que chegar cedo em casa. Nesse tempo, a minha mãe passou todo tempo trancada no quarto e deitada na cama, parecia uma pessoa que estava doente. Eu falava pra mim mesmo que mesmo ela desse jeito eu não iria mudar o que eu sinto por mulheres e ela tinha que entender a aceitar. Quando chegou o dia dos meus 18 anos acabou todo mundo se esquecendo, isso por causa da situação, nesse dia eu fui na hora do intervalo da escola a tarde comprar um pedaço de bolo e comi sentado acompanhado por duas amigas minhas.

Com 18 anos acabei conhecendo uma moça que é lésbica, não era um namoro normal, pois eu percebi que a palavra “lésbica” não me definia, só que eu não compreendia o motivo. Eu não conseguia sair na rua com essa moça e beijar ela, andar de mãos dadas, sempre me preocupava com o que o povo iria pensar. Com isso eu me maltratava muito e também por causa disso ela não compreendia, sempre a gente discutia. Esse namoro sempre acabava e a gente volta, isso passou mais de 1 ano. 

Nesse tempo eu entrei em grupos de redes sociais sobre lésbica, mas não me sentia bem, parecia que não era o meu mundo, as atitudes da maioria eu não concordava, pois uma boa parte gostava de falar besteiras sobre as mulheres em vez de tratarem bem, mas eu tentava entender que isso nem todas as mulheres são assim. Também comecei nesse tempo a ler contos “lésbicos”. Eu sempre gostei de ler os contos, pois as escritoras tem um dom muito bom para saber criar os contos."


Parte II


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