Arranjo - Capitulo I



Introspecção é o que move Helena desde o dia da assinatura de seu divórcio. Enquanto tenta encontrar a peça fundamental para seu Compasso, vê o mundo por outro ângulo.

I - Samba Decadência  

Tac.
Tum tac.
Tum tic tac.
Tum tac.
Tac.

Enquanto esperava, tentava criar a batida que mais tarde se tornaria o arranjo musical da letra que estava a compor; o samba da sua vida. O Compasso, sua casa noturna, estava lotada. Clientes fiéis e visitantes prestigiavam As Audições, um concurso pensado e criado para a escolha de uma cantora fixa para o estabelecimento.

Além dela, na mesa também estava seu sócio que nas horas vagas desempenhava o papel de irmão, um amigo deles que era produtor musical e sua inseparável carteira de cigarro; Hollywood. Estava tentando parar de fumar na base de pequenas substituições. Experimentou os alternativos e sentiu efeitos piores do que uma ressaca no corpo. Optou por trocar uma das carteiras por café, a segunda por chicletes e assim adquiriu mais três vícios. Não tão nocivos quanto a nicotina e companhia limitada.

A conversa da mesa girava entre arranjos e afinações ou a falta delas. Era a terceira semana de votação e até aquele momento de classificadas, apenas três. Um número relativamente baixo se considerar que a cidade em si respira música. Em seus pensamentos, um mundo de situações descortinava-se em imagens das últimas semanas.

Um divórcio sentido após meses em agonizante dor por causa de um apartamento em bairro nobre, as críticas familiares com relação à índole e ao caráter duvidoso de sua, agora, ex-esposa; os amigos do casal, as fofocas e toda uma lista de intempéries desagradáveis. 

Beirando os quarenta anos, Helena ainda se perguntava o que fez uma relação de quase doze anos desandar. As únicas alternativas que lhe vinham era interesses distintos e traição. Havia perguntado diversas vezes, mas a outra jamais havia respondido.

Bebeu mais um gole da sua água com gás enquanto olhava, de uma das mesas do primeiro andar, em direção ao palco. A segunda candidata finalizava sua apresentação sob fortes aplausos e gritos das torcidas que se formavam ali, durante o show. Dava graças aos deuses musicais por seu público ter um gosto refinado quando se tratava de música.

E foi pela sua necessidade de criar algo que pudesse propagar um dos seus dons, compor melodias, que nasceu o Compasso. Lembrou-se que Elton, seu irmão, foi completamente contra. Alegando que já haviam bares suficientes na cidade e sua réplica foi bem sucinta. Não como o meu.
O lugar tinha que ser ideal para a estrutura que idealizou, construção, organização, ornamentação e, por fim, a inauguração com show de uma grande e querida amiga que fez em uma das imensas viagens pelo mundo. Se muito ela veio aqui, foram duas ou três vezes. Em pouco mais de um ano, transformou a casa em referência de música boa, qualidade e ambientação segura.

Tinha shows dos mais variados, karaokê para quem gostava, eletrônica e, muito raramente, ela fazia voz e violão em uma noite intimista. Por incrível que possa parecer, era o segundo motivo de lotação da casa. Estava prestes a se levantar quando sentiu a mão gélida de Elton em seu braço. Olhou na direção que o outro lhe indicava e teve a impressão de ser um viajante do deserto pensando ver um oásis. Era ela atravessando o frontal do estabelecimento.

Estava bem diferente do que recordava. O corpo miúdo tinha perdido um pouco daquela atratividade, mas a elegância permanecia. A beleza era inquestionável e, seu coração agitado, incorrigível. Desistiu de mover-se da mesa e passou a seguí-la com os olhos. Viu quando ela sentou na mesa de amigos. Conversaram tão acaloradamente que era possível a percepção do tempo que passaram afastados.

Reparou também que volta e meia ela buscava algo com o olhar. Talvez um ou uma pretensa pretendente. Um acesso de raiva emergiu e se viu obrigada a engolí-la, uma vez que nada mais tinham. Seu coração parou por instantes ao ver uma bela moça oferecer-lhe uma bebida qualquer. Ciúmes em sua mais pura essência transbordava de seus olhos.

Se obrigou a dar atenção a última candidata da noite que a todos encantava com seu timbre e a letra da música ajustada em seu tom. Aplausos e gritos ecoavam. Votação encerrada e Elton já estava ao palco para anunciar a vencedora da noite. Nem sequer considerou ouví-lo. Ao voltar seu olhar para a pista, avelãs os capturaram. Minutos duraram uma eternidade naquele duelo e então ela sorriu. Uma brecha em meio aquele céu cinzento se abriu.

Devolveu-lhe um sorriso sem graça e voltou a concentrar-se na água. Absorta em um mundo paralelo, não sentiu a aproximação até que estivessem frente a frente. A outra puxou a cadeira e sentou-se, olhou em seus olhos desnudando-a e segurou em sua mão. Ao fundo, na voz grave de uma cantora qualquer jazia as reações de Helena.


"Bate outra vez com esperanças o meu coração, pois já vai terminando o verão enfim."
Cartola - As rosas não falam

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