Arranjo - Capitulo IV


Amar alguém é ver-se devoto de tal sentimento. O amor quando recíproco é bem vindo. Quando platônico é sonhador. Mas quando há uma noite e um segredo envolvido entre duas amigas?! Segredo esse que pode ser a ruína de um casamento. As vezes, mesmo na iminência de um Não, ainda é preferível arriscar a abdicar e sofrer pelo "se".

IV - Cancela o sentimento 


Alguns meses antes

Eu havia acabado de sair do banho e pensava no que preparar para nosso café da manhã. Ainda me perguntava como ela havia conseguido acertar o caminho da chácara debaixo de toda aquela chuva. Ainda mais no estado de quase embriaguez em que se encontrava. Entrei no quarto e ela permanecia na mesma posição. Deitada de lado na direção da janela de madeira de gameleira, nua.

-Meu Deus, Katrina! Olha o tempo como está. - Abri a porta após uma buzina insistente e deparo-me com Kaká molhada e fedendo a bebida barata. - Entra.
-Ai amiga. Só você... Eu nem sei mais o que fazer ou a quem recorrer.
-Primeiro você vai tomar um banho e depois conversamos.

A levei até meu quarto e a ajudei com o banho. Emprestei uma lingerie nova para ela e fomos para a cozinha. Enquanto eu fazia o chá, ela tentava ordenar seus pensamentos. Decerto houve mais um desentendimento entre ela e a "senhora perfeição". O de sempre, sempre.

-Ela não me ama mais. Só pode ser outra. Nesse mundo de música e empresarial sempre tem umas oferecidas que dariam tudo por uma noite com ela.
-Duvido que ela alguma vez te traiu. - Repliquei desgostosa enquanto colocava a xícara em sua frente.
-Não sei. Ela anda misteriosa, distante. - Provou um pouco do chá fazendo careta. - Horrível. - O deixou de lado.
-A incerteza e o ciúme são péssimos conselheiros. Já a chamou para uma conversa?

Sentamos no sofá para olhar a chuva através de uma das janelas abertas. Ficamos em silêncio por um tempo que eu não saberia precisar. Perdi-me em devaneios e porquês acordando ao sentir um toque suave em meu rosto.

-Você é um anjo, Dom. Meu anjo. Tem uma áurea que acalma, aquece.
-Não sou um anjo. Sou apenas alguém que quer vê-la bem.

Sorri de modo singelo beijando-lhe a mão em sinal de respeito. Eu a admirava, respeitava. Lhe era devota. A verdade era que eu havia me apaixonado, literal e perdidamente. Não sei dizer como ou quando, apenas aconteceu. Ao percebê-lo, tentei matá-lo, arrancá-lo de mim. Era informação demais para processar. Os encontros sucessivos eram verdadeiras sessões de tortura com o inconsciente entre a luta e a renúncia. Retribuí a carícia.

-Vamos dormir?! Está tarde e daqui a pouco a rede elétrica cai.

Katrina poderia ser muito geniosa, mas eu conseguia convencê-la. Fomos para o quarto entre brincadeiras. Deitei-me olhando para o teto, e quando menos esperei, uma blusa voou sobre mim. Ela deitou se aconchegando em mim como há tempos não fazia. As pernas trançaram as minhas e rezei para que ela logo adormecesse. Resiliente, eu até poderia ser, mas a tentação era palpável em demasia para que eu conseguisse manter meu juízo intacto.
Silêncio na casa, a chuva no telhado e meu coração pulsando em ritmo de frevo. Demorei a conseguir relaxar e pensar em dormir. Beirava a sonolência quando um sussurro e um aperto me puseram em alerta.

Já pensava em acordá-la quando bateram na porta. Deixei a bandeja que havia preparado em cima da mesa para destravar a porta já que eu havia reforçado sua segurança. Ao abrí-la, me deparo com Ingrid e sua expressão zangada.

-O que aconteceu dessa vez para ela te procurar? - Saiu largando a mochila em "qualquer lugar".
-Nada. - Fiz pouco caso.
-Você é uma trouxa e eu, por continuar contigo, Dominick. São três anos de relação e você NUNCA fez por mim metade do que faz por ela. É só estalar os dedos e você vai.
-Também não é assim.

Assim que entrou na cozinha, viu a bandeja. Me olhou e foi em direção aos quartos até vê-la deitada, graciosamente, coberta da cintura para baixo. Não houve nenhuma troca de palavras. Seu olhar, naquele instante, doeu-me e lágrimas verteram de seus olhos.

-As vezes me pergunto qual o grau do meu sentimento por ti e o quanto sou capaz de suportar. Mas chega um momento em que é necessário um basta para que essa relação não me machuque mais.
-Também não é assim, Ingrid. - Seguí-la para a sala.
-É sim. Estou farta do seu descaso, seu desamor e das migalhas que me oferece. Isso é doentio. Nocivo demais. Quando você decidir o que realmente quer para sua vida, me procure. - Saiu batendo a porta.


Duas semanas haviam passado após eu saber do divórcio e marquei um almoço com Katrina no Compasso. Achei estranho o local desse encontro, escolhido por ela, mas nada retruquei. Ao chegar no estabelecimento, as vi aos beijos.
Como assim?!
Eu pensando que o almoço era para falar como ela se sentia pós-fim e ela está nos braços da ex. DA EX. Respirei fundo, vesti a máscara da boa samaritana e me deixei ser notada.
Para infelicidade, quem me viu foi Helena. Nos cumprimentamos brevemente, e enquanto nos dirigíamos a mesa, Helena subia no palco. Sentou-se no banco que ali estava e passou a dedilhar algumas notas aleatórias no piano. Katrina me contava da "super noite" enquanto pensamentos e audição alinhavam-se ao timbre da voz que cantava, especialmente para mim. Senti uma mão sobre a minha e voltei ao presente.

-De certa forma, devo tudo isso a você.
-Não deve a mim, e sim, a sua coragem de lutar pelo seu amor. -  De fazer o que eu não fiz.
-Você foi e sempre será importante para mim, amiga.

Amiga!

Ecoou me atordoando. A sensação era de estar sufocando dentro das palavras que me fugiam, no medo, no adiamento. Interrompi suas palavras antes que meu último fôlego de vida se esvaísse.

-Desculpe-me. - Disse quase inaudível, tentando firmar minha voz.
-Desculpas?! Pelo que?
-Por ser tão covarde e não dizer nas horas certas o que necessitava.
-Não entendo. - A confusão nublava teus lindos olhos avelãs.
-Eu te amo.
-Eu também te amo, Dom.
-NÃO! Eu te amo. Te desejo como se deseja uma mulher. Tê-la em meus braços, fazer-te delirar gritando o MEU nome. E foi assim por muitos anos. Desde aquela noite em que... - Não consegui manter o contato visual.

-"Não era pra passar do beijo, mas passou. Não era pra ficar no quarto, mas ficou. Amanheceu. Inédito o que aconteceu..."

 -Mas você disse que...
-EU MENTI! Eu menti... Eu vi arrependimento em seus olhos. Estávamos embriagadas, era fácil fingir amnésia.
-Por quê?
-Amor... Ou obsessão. Já não sei. - Um sorriso triste escapou-me.
-E agora?! Como ficamos? Não quero te perder.
-Não vou suportar te ver com ela novamente. Vim disposta a tentar lutar para que me notasse, mas... Eu não posso mais. - Levantei-me e senti sua mão presa a minha.

-"...Mas essa noite a vibe bateu forte que deu medo e foi estranho..."

Saí dali às pressas para que não desabasse em prantos na frente de todos. Ainda pude ouvir as últimas estrofes da minha vida cantada pela mulher que me tirou pela segunda vez a chance de tentar ser feliz ao lado de quem eu desejava...

-"... Cancele o sentimento, nem fala que ama. A gente acorda junto, não estraga tudo. Não traz o coração pra cama."  

Marcos, Belluti e Marilia Mendonça - Cancela o sentimento 

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