Arranjo - Capitulo II



Se as batidas daqueles corações se fizessem audíveis, decerto um samba enredo poderia, facilmente se fazer escutar. Diante de seus olhos estava a possível solução para o tormento interno que lhes afligia. Através dos olhos quase tudo é revelado. Porém ainda se fazem necessárias algumas palavras.

II - Canção da Admiração

Aqueles olhos nublados ainda cultivavam a chama do amor, outrora vivido, e agora, perdido. O sorriso que um dia já lhe mostrou o brilho das constelações celestes, hoje mais parecia feito daquelas luzes artificiais vendidas em qualquer loja de conveniência. Ela havia emagrecido bastante ao ponto de deixá-la preocupada. O semblante, embora tentasse aparentar serenidade, mostrava a dor.

As pequeninas mãos de ambas, uma vez unidas, não se soltavam por receio de se perderem uma outra vez em meio às muitas indefinições; o frágil fio da doce esperança. O medo poderia paralisar ou seria um ponto de partida para decisões? No caso delas, não foi o medo tampouco um impulso de falsa coragem. Era a tão famosa saudade que no auge do seu sentir ultrapassou as barreiras do orgulho ferido e da indiferença.

Estava ali, diante de Helena, uma mulher irreconhecível. Não só pelo olhar de brilho opaco, mas pelas intenções que transpareciam nos seus delicados, quase imperceptíveis gestos. Elas tinham o dom de interpretar os silêncios e olhares. E o que Helena via diante de si a fez voltar alguns anos em meio a lembranças de um evento marcante no alto da serra paulistana.

Elas comemoravam anos de relacionamento da maneira que mais gostavam. Na varanda do imenso chalé observando o nascer do sol com uma xícara de café, para si, e chocolate quente com canela para sua amada. O cantarolar dos pássaros era um mero detalhe. Naquela ocasião, Helena estava inquieta, pois havia comprado um solitário em ouro branco, traços delicados em seu acabamento lembravam as amadas flores que a outra adorava cultivar. Ensaiou alguns dizeres, mas ali, presa naquele límpido olhar, nada pôde fazer senão abrir a pequena caixa de veludo vermelho revelando uma agradável surpresa. Um "sim" quase inaudível para uma pergunta não verbalizada. Beijaram-se como se houvesse o regresso de uma missão oficial da noiva de uma guerra inexistente.

Um suspiro no ar. O responsável pela sonoplastia da noite parecia atento àquele atípico casal de palavras mudas, e criava a trilha perfeita em meio as imperfeições daquele encontro não programado, não esperado, porém muito desejado por ambas.

Devido a algumas burocracias, Helena precisou ausentar-se após o chamado de seu irmão. Preparava-se para levantar quando a outra entrelaçou seus dedos de maneira mais forte, intensa. O mudo pedido novamente. Um menear de afirmação e os lábios mexeram-se quase sem som.

Eu volto.

A empresária não precisava virar para saber que era seguida por um par de avelãs. Elton, que observava toda a interação do não tão recém ex-casal, era sabedor de toda aflição que havia se instalado no coração da irmã. Torcia secretamente para que no fim as forças regentes do amor fossem benevolentes.

Eros, cupido travesso, deixe o coração, já tão dolorido, de minha irmã ser curado sem mais percalços em seu caminhar. Se ela teve a coragem de vir atrás que seja sincera e verdadeiramente ela. - O homem rogou.

Katrina tamborilava os dedos na mesa. Acompanhou todo o caminhar de Helena pelo salão e tinha consciência de que a outra sabia ser monitorada. Olhava o líquido na caneca, deixada ali por um garçom, e sorriu. Era sinal de um certo alguém ainda lembrava de seus gostos e saberia também que o nervosismo a tinha privado de sentir fome.

O doce aroma despertou seu pequeno dragão interior. Segurou com as duas mãos a caneca e a levou aos lábios fechando os olhos para que o sabor demorasse um pouco mais para ser diluído.

Quando a relação delas caiu na maldição da rotina? Por que não tentaram reavivá-la? Será que tinham razão ao dizê-la que haviam durado muito enquanto casal?

Foram poucos os segundos, mas o filme que lhe atingiu parecia durar anos. Ao abrir os olhos teve a visão mais estonteante de sua vida. Sua doce e linda acompanhante estava de volta e em seus lábios um sorriso. Também sorriu. A outra gargalhou enquanto limpava um bigodinho achocolatado. Aproveitou para acariciar o rosto da outra e a confirmação de que aquele gesto era ansiado por ambas foi a entrega total à carícia. Não existia ninguém além delas no pequeno nirvana chamado espaço lounge.

-Onde erramos? - Helena, enfim, quebrou o silêncio.
-Quando nos calamos e guardamos em nós mesmas aquilo que deveria ser escancarado. Quando não ouvimos o nosso coração e confiamos à outra o que deveria partir do nosso eu. Quando deixamos de nos ouvir para ouvir os outros, cheios de veneno a destilar em nossa relação.  

A resposta pesou em seus corações. Helena ponderava, Katrina esperava. Ambas amavam. E "o amor é a força mais poderosa de todas." Deixando as inseguranças e medos, por fim decidiu-se pelos versos da melodia que ressoava dando mais certeza de suas convicções.

"-Ain't no way for me to love you. If you won't let me."
Aretha Franklin - Aint no way

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