O Amanhã a Deus Pertence - Capitulo II




2 - Alçando Voos Necessários 


Desde pequena, Ana ouvia seu pai recitar versos bíblicos ou de canções populares e suas explicações. Assim começou sua paixão pelas letras. Paixão tão intensa que já na fase do vestibular resolveu fazer faculdade de literatura em Coimbra. Seu pai embora tivesse sido criado de modo conservador, foi a favor da decisão da filha. No fim daquele mês ela deixava o Brasil em busca de um sonho.

 A Divina Comédia foi a cereja de seu bolo. No jornal da universidade, colaborava com pequenas crônicas ou contos sempre voltados para a comédia. Assim começava uma carreira que lhe renderia fama, reconhecimento, realização pessoal e o imenso orgulho de seus pais. Nesse período conheceu a pessoa que depois de anos veio a se tornar sua amiga e sócia em um projeto de livraria diferente, onde os jovens poderiam interagir com suas leituras preferidas. Solteira convicta e discreta quando em uma relação. Não utiliza os rótulos impostos pela sociedade considerando-se amante de pessoas, sejam elas homens ou mulheres.


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Giuliana Alves Vanolli era uma mulher difícil de esquecer. Descendente de italianos pela família paterna, herdara o tom claro da pele, os cabelos negros e lisos, os olhos azuis e uma covinha ao sorrir que era sua marca registrada. Do lado brasileiro, herdou as curvas e o quadril típicos das mulheres negras. Eram 173 centímetros de doçura e um timbre de voz marcante.

 Seu pai trabalhava como padeiro durante o dia e como músico à noite. Cantava nas serenatas quando contratado e foi assim que Giuseppe Vanolli conheceu Eunice, a mulata para quem ele havia sido contratado para cantar por um rapaz que pretendia lhe fazer a corte. Foi encanto à primeira troca de olhares. A partir daquele dia, Giuseppe procurou meios de se aproximar da bella donna até que um dia ele a convenceu a deixar que a acompanhasse até a sorveteria. Um segundo encontro aconteceu e no terceiro descobriram-se perdidamente apaixonados. O casório foi realizado às pressas e o recém-casal teve de fugir da cidade, pois o antigo pretendente jurou o italiano de morte. Estabeleceram-se na capital baiana e poucos meses depois descobriram que seu amor havia dado fruto.

A infância de Giuliana foi em meio a pães e música já que seu pai abriu uma pequena padaria no bairro onde moravam e às noites ele cantava para os amores da sua vida. Mas o que acalmava a pequena Giuliana era desenhar. Passava horas com lápis e papel e quando não encontrava as folhas em branco fazia uso das paredes. As massas de modelar eram seu brinquedo constante. Os pais a incentivavam, pois sabiam que dali poderia desenvolver o lado artístico da criança. Os anos passaram e a arte adentrou cada vez mais a vida da italianinha. Para uma apresentação escolar ela precisou ler um livro de uma escritora portuguesa famosa e gostou tanto que passou a pesquisar livros de autoria feminina.

Quando chegou à época do vestibular não foi difícil saber que a escolha da jovem seria as artes, mas sua paixão pela literatura continuava e cresceu mais um pouco com a descoberta de sua sexualidade e do maravilhoso mundo da literatura lésbica, saraus e eventos. Foi em um desses eventos que conheceu Laura Martins da turma de Administração que posteriormente veio a se tornar sua esposa.

Loira, 168 centímetros de um corpo trabalhado diariamente na academia e olhos castanhos desconfiados. Laura era filha de um empresário viúvo e dono de algumas lojas têxteis. Mimada pelo pai desde que perdera sua mãe, entrou na universidade apenas para satisfazer a vontade do pai. Não tinha interesse em trabalhar na área embora seu pai sempre mencionasse que ela seria sua herdeira universal e deveria saber conduzir os negócios.

Na noite do jantar de apresentação de Laura à família Vanolli, Giuseppe mostrou seu descontentamento com essa relação após observar a moça durante o evento. Aos olhos do italiano, sua princesa não seria feliz, mas ao ver o brilho do encantamento no olhar de sua menina resolveu guardar suas suspeitas.

O mesmo não aconteceu na casa do Sr. Martins. O homem mostrou seu descontentamento em relação a esse namoro da filha com uma mulher de classe inferior a sua e estudante de Artes. Se fosse Relações Públicas, que dá acesso à diplomacia, era algo a ser considerado. O homem pensava que certamente deveria ser mais uma de suas afrontas. Como vinha acontecendo nos últimos anos. Ele sonhava entregar sua filha no altar a um homem que pudesse honrar seu bibelô e ajudá-la a gerir os bens.

Nas vezes que Giuliana jantou na companhia do sogro foi humilhada sempre que o homem encontrava uma oportunidade, diminuída pela sua origem e subestimada. Sempre que saía da casa dos Martins, corria para o colo dos pais em lágrimas e seu pai fazia-lhe a mesma pergunta.


-Por que continuar uma relação assim?

-Porque a amo, pai. E ela me ama.


Laura era a personificação do romantismo quando se tratava de surpreender a namorada. Com ou sem datas comemorativas, ela levava um mimo para sua amada. Desde uma pequena joia a um tablete do chocolate preferido delas para dividirem em meio a beijos e sorrisos. O programa preferido do casal era andar na orla da cidade no fim de tarde e assistir ao maravilhoso pôr do sol.

Quando completavam um ano de namoro, Laura organizou um jantar simples para as pessoas mais íntimas e familiares com os pratos preferidos de sua amada. Dias antes procurou uma joalheira e encomendou um par de alianças em ouro branco bordada com algumas tiras nas cores do arco-íris e pediu que gravasse dentro a data do início do namoro delas. Iria por em prática algo que já havia sido conversado entre elas. Iria pedi-la em casamento.

A forma tão doce com a qual foi realizado todo aquele evento e o pedido em si deixou Giuliana em êxtase. Aceitou em meio a lágrimas de alegria e o resto da noite foi de comemoração. O casal começou a planejar a mudança da italiana para o apartamento de Laura. Não havia motivo para continuarem dormindo separadas. O momento de estresse ficou por conta de Martins que interpelou a nora acusando-a de ser uma aproveitadora e a discussão não se tornou acalorada por causa da intervenção de Laura, que convidou o pai a retirar-se da casa delas.

A união estável aconteceu meses depois em uma tarde de outono sob o pôr do sol e a presença de uma juíza de paz e dos familiares de uma das noivas, Giuliana. Não houve uma lua de mel prolongada por conta do trabalho e do fim dos estudos de ambas. Faltando menos de um ano para o fim do curso, Giuliana recebeu um convite para passar três meses em Portugal estudando sobre a arte portuguesa e europeia de modo geral. Laura foi a maior incentivadora para que ela fosse, alegando que seria bom para sua formação. Um mês depois o casal apaixonado despedia-se no aeroporto da cidade.


-Assim que chegar no hostel me liga.
-Aham. E você se cuida aqui. Vou morrer de saudades. - sussurrava em seu tom rouco.

-Não faz isso, amor. Você sabe que é golpe baixo. Assim não te deixo ir.


O voo com destino a Lisboa foi anunciado e elas trocaram um beijo rápido antes da mulher se encaminhar para a área de embarque. Várias horas depois, Giuliana Vanolli desembarcava no aeroporto da cidade de Lisboa, Portugal.

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