O Amanhã a Deus Pertence - Capitulo IV




4 - A Ampulheta do Tempo I


Após conhecer seu local de trabalho, estudos e aprimoramento de suas técnicas de pintura e esculturas, Giuliana aceitou o convite de Umberto para almoçarem juntos. Foram a um restaurante próximo ao museu e, por sugestão do mais novo amigo, solicitou o especial da casa.

Descobriram no decorrer daquele evento afinidades e gostos em comum. Seguiram depois para alguns pontos turísticos da cidade, com Umberto explicando sobre sua criação e passagens importantes acerca do lugar.


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Ana conversava com Patrícia sobre um projeto para novos escritores que seria financiado pelo governo como forma de resgatar o gosto das pessoas pela literatura e incentivar para que esse hábito tão importante não pereça diante da era digital e suas constantes mutações. 


-De acordo com o e-mail que recebi da Fundação Portuguesa de Literatura, todos os tipos de textos serão aceitos.
-De certo que sim. Tens fama, Ana. Quem não gostaria de exibir um texto seu em um evento desta importância? 
-Fama essa que há pouco começou. Conheço escritores consagrados que não têm o merecido reconhecimento em seu país, seja pelo estilo ou tema de sua escrita. Acredito que literatura lésbica não agrade a muitos.
-És Cristo, por um acaso?! Não queira agradar a todos. Vais te inscrever? 
-Tenho escolha?
-Não. Onde será a mostra?
-Ou na Biblioteca Nacional ou no Museu do Chiado daqui a dois meses. O tempo que tenho para preparar algo.
-Excelente. Preciso ir-me, pois tenho situações a resolver. Mas em breve apareço para devolver vossa vestimenta.


Ana a conduziu à porta e despediram-se com um beijo no rosto. Assim que sentou-se no sofá de sua sala, o telefone tocou. 


-E káàro, omodé mi (Bom dia, minha criança).
-Bàbá, wá gbé o. Sé alàáfia ni? (Pai, sua bênção. Está tudo em paz?).
-Olorun gbé o. Alàáfia ni. Quando virá ao Brasil? (Deus te abençoe. Está tudo em paz).
-Em breve, papai. Como está mamãe? 
-Aqui ao lado a reclamar do dialeto, como sempre.
-Saudades mil de vocês. Quando virão a cá?
-Após tua visita.
-Entendido, Oba'Dayó. Assim que possível irei ao Brasil.
-Perfeitamente. Eu e sua mãe iremos a um evento de amigas dela. Liguei apenas para saber de ti. Se está bem. Olorun ni pèlú re (Deus esteja contigo).
-Asè. 


Ambos desligaram saudosos. Desde que havia concluído sua faculdade em Coimbra, poucas foram as vezes em que Ana pisou em terras brasileiras para rever os pais. Enquanto rememorava a conversa de poucos instantes atrás, organizava alguns textos e poemas que precisavam de registro. Em breve lançaria um livro e não era de seu agrado imprevistos.

A passagem do tempo é tão relativa. Para uns a transição de um dia leva uma eternidade. Os minutos parecem milésimos de segundos, uma mísera hora leva praticamente um dia para mudar a posição dos ponteiros do relógio. Já para outros o tempo voa, literalmente. Estando no exercício de algo prazeroso nem sente-se os dias passar.

E assim passaram-se os meses para Ana e Giuliana. Nesse período, a amostra cultural e literária foi organizada na Biblioteca Portuguesa e escritores e artistas, de modo geral, foram convidados. Giuliana teve a oportunidade de conhecer mais profundamente Umberto e descobriu que ele era um perfeito cavalheiro e as moças adorariam encontrar nele um príncipe encantado. Ele certamente teria esse papel se não estivesse ele também em busca do seu príncipe encantado.

Foram a eventos e exposições, coquetéis e saraus. Em uma das últimas exposições, conheceram Vertrudes Ignácio, uma ilustradora de fama mediana e modéstia quase nula. Interessou-se de imediato pela italiana, mas Umberto frustrou suas pretensas expectativas ao anunciar o estado civil da moça.


-Uma lástima. Gaja tão bela e já desposada. – A insatisfação com tal noticia lhe era transparente.


A noite da amostra e última noite de Giuliana na terra dos patrícios enfim chegou. Por conta deste evento, o Museu Nacional de Arte Contemporanea do Chiado não havia aberto, excepcionalmente. Giu havia combinado com o amigo para que ele a encontrasse às 19 horas em frente ao hostel.

A mulher havia escolhido um vestido longo preto de mangas compridas. O brilho do tecido se dava por causa de pedrarias bordadas que combinavam com a gargantilha e par de brincos com a pedra ônix em seu centro. Umberto, que havia chegado, vestia um terno cinza grafite e optara por um mocassim de couro negro nos pés. 

Seguiram rumo ao evento em meio a risadas e ameaças de choros por conta da despedida. Ao chegar em frente ao local, que mais parecia a fachada de um templo da era medieval em arquitetura gótica, logo avistaram Vertrudes e trataram de passar despercebidos em meio a um grupo que adentrava o local alegremente. Passeavam entre os corredores enquanto admiravam e conversavam sobre as obras.

Não muito longe dali, Ana seguia no carro de Patrícia para o evento. Quando a outra chegou em sua porta para buscá-la, ficou paralisada diante de tamanha beleza. Ana usava um longo verde musgo com algumas pedrarias também naquele tom ao redor do decote realçando ainda mais a cor de seus olhos. Nos pés um scarpin nude. As joias eram simples e consistiam de um par de brincos de pérola e, no pescoço, sua inseparável pedra esmeralda que ganhara do pai quando criança.

Patrícia escolheu um longo rendado na cor branca e um scarpin também branco. Uma gargantilha, brincos e pulseira de brilhantes completava o look da noite. A morena, ainda deslumbrada com aquela visão dos céus, conduziu-a para o carro e, num gesto cavalheiro, abriu a porta para que a outra entrasse. Quando chegaram em frente à biblioteca, os holofotes voltaram-se para a africana. Ela era uma das aguardadas para a noite e, de modo algum, poderia faltar. Ela sorriu para algumas fotos e entrou, indo diretamente para o local reservado aos escritores que fariam alguma apresentação. 

De todos os lugares e espaços dentro da biblioteca era possível se ouvir a apresentação da lista de poetas a versarem e alguns telões podiam ser vistos em pontos estratégicos. Enquanto olhavam um quadro de Vertrudes cujo nome era "Formas Efêmeras", onde era possível ver uma mulher deitada de barriga para cima em uma mesa e outras mulheres analisando sua anatomia, tentando expressar o que pensavam quando na presença de tão intrigante quadro eis que uma voz doce e aveludada se fez ouvir.


Quisera eu ser a detentora dos teus olhares enamorados
Ser o motivo de tão límpido sorriso
Ser o pulsar do teu coração. 

Quisera eu que tú percebestes quem sou
E ao teu lado estou em noites frias para aquecer-te
Nas tempestades a proteger-te sob meu corpo
Quisera eu poder declarar-me a ti sem medos
E inseguranças vãs que impedem o concretizar deste meu querer.


Antes que pudesse olhar através do telão a dona daquela voz, outro poeta subiu ao púlpito iniciando sua apresentação. 


-De quem era aquela voz, Umberto? 
-Boa de se ouvir, concorda?! Ela se chama Ana Tayó'Nilè, é filha de um africano e uma portuguesa. Escreve e declama poemas lindamente, mas raramente os publica. Prefere as comédias. E é uma das poucas que arriscam-se a falar do universo homossexual em seus textos.
-Você disse que ela tem livros publicados. Onde os encontro?
-Embaixo, perto da entrada tem uma tenda os vendendo.


Os amigos se dirigem até o local e Giuliana compra os livros disponíveis da africana. Dois de contos de comédia e um de poemas, incluindo aquele que havia sido recitado. O restante da noite eles assistem algumas apresentações, mas aquele poema e a voz que o recitou não saem dos pensamentos italianos. Umberto a deixa no hostel por volta de 2 horas da manhã. Giuliana precisava descansar, pois seu voo sairia às 9 horas em direção ao Brasil. 

No dia seguinte, o amigo a levou até o aeroporto e as lágrimas foram inevitáveis na hora em que seu voo foi anunciado. Abraços e juras de correspondências foram trocadas e a moça seguiu o corredor de embarque com a certeza de uma amizade sincera e conhecimentos agregados. 

Em seu desembarque, a surpresa não poderia ser maior quando avistou sua amada segurando um lindo buquê de rosas vermelhas. O abraço foi uma das formas encontradas de aplacar a imensa saudade. Dali seguiram para o apartamento do casal. As malas foram largadas atrás da porta quando as bocas se encontraram e mãos tateavam corpos em busca de reconhecimento do território. A cama estava muito longe, o tapete felpudo serviria perfeitamente para o cenário de intenso amor.

Várias horas depois, o casal saiu em direção à casa dos pais de Giuliana. A jovem sentia saudades e o casal de idosos também. Foi um dia agradável de descobertas, narrações e risadas. A noite foi a vez dos amigos queridos matarem a saudade no barzinho de sempre.

Inacreditavelmente, os anos passaram. Cinco. Laura tornou-se uma administradora melhor que seu pai, expandindo as antigas lojas têxteis e transformando-as em uma rede com filiais em quase todo o país. O nome Giuliana Vanolli tornou-se familiar no maravilhoso mundo das artes como pintora e escultora. Gostava do seu trabalho e chegou a ser convidada pra algumas exposições internacionais. Sua amizade com Umberto solidificou-se e, pelo menos duas vezes por ano, ele vinha ao Brasil. Uma delas no carnaval, claro.

Há pouco mais de um ano atrás os pais de Giuliana resolveram morar na Itália deixando a casa e os negócios na mão de Paolo, o filho mais novo, que era casado há três anos e tinha um casal de gêmeos com pouco mais de um ano e meio. 

Giuliana e Laura haviam se mudado do apartamento simples para uma casa um pouco mais luxuosa no bairro de Itapuã, o que causava certo desgosto na italiana. Mas pouco demonstrava para evitar confusões desnecessárias. Nesse dia em especial, o casal completaria cinco anos de casamento e haveria um coquetel na sede da empresa da família de Laura para comemorar mais uma aquisição. Giuliana estava ressonando quando ouve seu aparelho telefônico tocar, atendendo sem olhar.


-Oi.
-Giu?!
-Paolo, isso são horas?
-Desculpe, esqueci do fuso. Tenho notícias. 
-Fuso? Notícias? Onde você está?  - perguntou já desperta.
-Estou na Itália. O papai sofreu um princípio de infarto e foi internado às pressas.
-O quê? Quando?
-Foi em uma saída dos dois e...
- Não importa, vou para o aeroporto já. 
-Não precisa. Era só… 


Giuliana jogou algumas mudas de roupa de forma desajeitada em uma mala e desceu gritando Antonieta, a governanta, deixando com ela o recado de sua viagem emergencial. Durante o trajeto tentava desesperadamente ligar para a esposa sem sucesso. Quando já estava prestes a embarcar, Laura retornou sua ligação. 


-Oi, amor. Onde você está? 
-No aeroporto indo para a Itália. 
-O quê? Justo no nosso dia?
-Meu pai sofreu um infarto. Eu tenho que ir.
-Mas não dava para ir amanhã? Iria contigo.
-É o meu pai. Não vou esperar. Vou desligar pois já estão chamando o voo. Quando chegar lá te aviso. Te amo.
-Não parece.


Laura desligou o telefone furiosa. Justo no dia que ela vinha preparando o velho italiano inventa de adoecer. Que ele não gostava dela não era novidade, agora doença já era demais. Foi arrumar-se para o coquetel.

Chegou ao evento com um pouco de atraso. Cumprimentou a todos e dirigiu-se ao bar. Pediu um whisky e foi ter com alguns sócios. À certa altura, já alta, dançava com um dos sócios do pai. Um homem aparentando quarenta anos e que estava praticamente caindo dentro do decote do seu vestido vermelho, cor que lhe cai bem. 


-Tire seus olhos daí, Augusto. Tanto você quanto eu somos casados.
-Minha esposa está em casa. E a sua?
-Na Itália. 
-Te deixou sozinha?
-O pai enfartou. – disse virando um copo de whisky de uma vez.
-Devagar. Você já está alta demais. – o homem disse retirando o segundo copo de sua mão. 
-Quero ir para casa. Me leva?
-Claro, princesa. Estará segura comigo.


Laura despediu-se de alguns convidados enquanto o homem saía à francesa e posicionava seu carro na rua lateral ao prédio. Minutos depois, Laura abria a porta do carona daquele Mercedes clássico preto. Com destino a sua casa.

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