O Amanhã a Deus Pertence - Capitulo V



5 - A Ampulheta do Tempo - Parte II


Cinco gloriosos e gratificantes anos também passaram para Ana. Após a amostra cultural onde lindamente declamou seu singelo verso, como costumava brincar, Ana teve a notícia do esgotamento de todos os seus livros nas prateleiras das livrarias portuguesas. Começava ali a subida de sua carreira.

Foi necessária outra edição em caráter emergencial, pois a procura havia aumentado consideravelmente. Ainda naquele ano, ela lançou o livro de poemas Trans(Verso), onde reunia em vinte e uma páginas versos que retratavam as metamorfoses do amor e alguns poemas de conotação sexual.

Houve uma chuva de críticas positivas e uma editora especializada em literatura LGBT brasileira a convidou a lançar alguns de seus livros naquele país. Ana daria um novo passo e sua felicidade era maior por ter a oportunidade de alçar esse voo em companhia dos familiares e amigos brasileiros.
Em menos de um ano, ela retornou ao Brasil para ficar. Lançou seus livros pela Colser Editora e foi um sucesso anunciado. Ana Tayó'Nilè se consagrava na terra que a acolheu.

Enfim pode dar vida a um antigo sonho em parceria com uma amiga. Ana sempre quis criar uma biblioteca que atraísse e oferecesse aos jovens várias possibilidades de leitura e forma de aprendizado.

A busca pelo lugar ideal levou seis meses até que passando de carro pela cidade ela viu a placa de "vende-se este terreno". Anotou o número e ligou para o dono acertando valores. Negócio fechado, mãos à obra.

Nascia a Lus@Teca uma biblioteca com livros físicos e digitais, espaço informatizado, cafeteria, lanchonete e um auditório que recebia jovens autores a cada final de mês para rodas de diálogos e saraus.



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Giuliana acabava de dar entrada no Milan Medical Center quando avistou o irmão vindo em sua direção. Trocaram um longo e saudoso abraço antes de qualquer palavras. Assim que soltaram-se a mais velha perguntou.



-Como ele está?
-Estável. A cirurgia foi tranquila e o médico disse que ele ficará em observação. Quando acordar farão novos exames e dependendo do estado e resultado irão liberá-lo.
-Que bom. Será que eu poderia vê-lo?
-Vamos. A sala de UTI daqui tem vidro transparente.



Assim que viu o pai ligado àquela infinidade de aparelhos e respirando com o balão de oxigênio, lágrimas começaram a sair de forma silenciosa dos olhos da italiana. Passava um filme em sua mente, desde pequenina até a última vez em que falara com o pai. Chegara à conclusão de que não estava preparada para perdê-lo tão cedo. Talvez nunca estivesse.

O irmão conseguiu convencê-la a ir descansar, pois a viagem havia sido desgastante. Paolo a levou de carro até a pequena vila em um bairro mais afastado do centro de Milão, onde as casas eram ainda na arquitetura da idade média, dando a sensação de que o tempo havia parado para aquele lugar. E de fato havia.

Colocou as malas no quarto que era seu e tomou uma ducha quente. Precisava esfriar os ânimos e pensar na vida. Ainda estava chateada com Laura, mas deixaria para ligar no outro dia.
Naquela hora ela estaria no coquetel da empresa, sozinha. Mais um motivo para seu sogro criticá-la. Não se gostavam e sempre que podia, o homem a alfinetava. Ele não esperava que aquele casamento por afronta perdurasse.

Desceu até a cozinha, encontrando o irmão e a cunhada em um clima de romance e resolveu interrompê-los de forma brincalhona, o que causou alguns risos e a conversa fluiu agradável enquanto a moça experimentava um prato preparado pela cunhada.




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Laura despertou com uma enorme dor de cabeça fruto da mistura alcoólica da noite anterior. Levantou-se preguiçosamente em direção ao banheiro para fazer sua higiene matinal. Após um banho demorado, ela desceu para o café encontrando a velha senhora.



-Bom dia, menina.
-Não está bom, Nieta. – deu-lhe um beijo no rosto e sentou-se.
-A menina Giuliana já ligou dando notícias do pai?
-Ainda não e, com certeza, ela ainda está chateada comigo. Será que ela não podia deixar para ir hoje? Eu a acompanhava, embora o velho não goste de mim, eu faria por ela. – tentava beber o café que a senhora lhe servira.
-Já pensou se fosse você no lugar dela. Deixaria para ir hoje?
-Certamente. Eu passaria o nosso aniversário de casamento com ela e iria no dia seguinte.
-Menina, menina. Não sei como esse casamento durou tanto se pensas assim.
-Porque existe amor nele. Giu me ama loucamente. – falou de forma convencida.
-Por maior que seja o amor entre duas pessoas, serão as atitudes que ditarão o rumo da história. Amor não é tudo, querida. Ela pode se encantar por outra pessoa que mostre a ela que o mundo pode ser mais leve. Com sua licença.



A senhora deixou uma Laura pensativa na mesa. Olhou a tela do celular onde tinha uma foto dela e da esposa em uma das viagens de lua de mel que fizeram à Argentina. Ambas exibindo sorrisos de felicidade, sem preocuparem-se com o mundo. Discou o número da esposa e aguardou.



-Hum?!
-Amor? Te acordei?
-Aham. – o cansaço se abatera de tal forma sobre Giuliana que ela sequer conseguia formular uma frase.
-Desculpa por ontem, amor. Como está seu pai?
-Entubado na UTI, mas vai melhorar.
-Vai sim. Mais tarde te ligo. Te amo.
-Também.



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Giuliana afastou o aparelho do ouvido, colocando-o em cima da cômoda junto ao abajur de seu quarto. O irmão a persuadiu a dormir mais e à tarde ir ao hospital. Horas mais tarde, os irmãos conversavam com o médico que o havia operado.

O médico informou da suspensão do medicamento e agora era aguardar o velho Giuseppe acordar. Naquele mesmo dia Laura ligou e Giu contou sobre o que o médico falou. Perguntou sobre o coquetel e Laura deu um resposta resumida e simplória aproveitando o ensejo para pedir perdão à esposa, que disse-lhe que elas precisavam conversar, mas só quando voltasse para casa. Data essa que estava indefinida.

No final daquela semana Giuseppe começou a reagir de forma esperada. Abriu os olhos e já pronunciava algumas frases. Seus familiares vibraram. Passados três dias e depois de todos os exames normais, Giuseppe deixava o hospital.

Em casa foi recebido com festa pelos parentes e amigos, que já faziam parte da sua família. Sob ordens médicas de repouso, o homem pouco tempo ficou em meio à comemoração. A esposa e os filhos se revezavam nos cuidados e nas horas de ministrar os remédios.

Um mês. Foi o tempo de recuperação do chefe da família. Um mês foi o tempo que Giuliana passou ao lado do pai. Falava com Laura e, nesse meio tempo, encontrou tempo para admirar a arte renascentista neoclássica junto à contemporaneidade.

Antes de ir para o aeroporto, recomendou ao pai que não fosse tão turrão e fizesse tudo que era preciso para se manter bem. Paolo a levou ao aeroporto e despediram-se brevemente. Antes de embarcar, ligou para o celular da esposa e dava caixa postal.

Entrou no avião muito mais aliviada do que quando desembarcou. Desembarcou em Salvador com chuva, algo atípico na cidade de todos os santos. Pegou um táxi e em quinze minutos estava em casa.
Entrou e estranhou não ver a governanta na sala. Subiu depositando as malas no chão do quarto, tomou um banho rápido e desceu em busca de informações.



-Onde está Antonieta?
-Saiu com dona Laura. Foram ao médico.
-Médico?
-Dona Laura não se sentiu bem esses dias.
-Obrigada. Era só o que faltava.



Almoçou e pediu para que a empregada a chamasse quando as duas voltassem. Foi para a varanda da suíte do casal e acabou cochilando. Acordou com as vozes da esposa e de Antonieta conversando.



-Ela não vai saber.
-Mas menina.
-Sem "mas". Isso nunca aconteceu. Certo?
-Tudo bem. Descanse.

-O que você teve que precisou ir ao médico? – Giuliana entrou no quarto.
-Pode ir, Nieta. Obrigada. – a senhora de estatura baixa e cabelos grisalhos, frutos do tempo, deixou o quarto. – Gastrite nervosa.
-Eu digo para você maneirar nesse trabalho, mas você ama aquilo. Se estressa com seus subordinados e dá nisso.
-O médico me receitou e pediu que eu mantivesse pelo menos dois dias de repouso. Estou com sono e saudade. Deita aqui comigo?



Giuliana encostou na cama e abrigou Laura entre seus braços como faziam no início do relacionamento. Os meses passavam com a cadência das ondas que nas areias da praia quebravam. Giuliana recebeu através de Umberto um convite para integrar uma exposição itinerante de quadros e esculturas pelos países da Europa e do continente americano, o que poderia elevar consideravelmente sua carreira naquele meio.

Após conversar com Laura, ela aceitou o convite que lhe traria reconhecimento em sua área. Teve um mês para separar seus quadros mais significantes e algumas de suas melhores esculturas. Faltando três dias para sua viagem à Portugal, ponto de partida, algo ocorreu.

Giuliana, que ressonava, despertou. Calçando as sandálias pegou um roupão e saiu do quarto sem fazer barulho algum. Foi em direção a seu ateliê. Colocou uma tela em branco no cavalete e começou a pintar de maneira tão concentrada que mais parecia estar em transe.

Quando deu por si, o sol entrava pelos vitrais da janela. Deixou o quadro secando e voltou para a cama. Ao chegar encontrou Laura abraçada a seu travesseiro. Sorriu ternamente e decidiu-se por um banho.

A exposição saiu de Portugal e passou por França, Alemanha, Suécia, Espanha, Grécia (país na qual passou mais tempo), seguindo para a China, Estados Unidos, encerrando-se no Brasil ao completar um ano de seu início.

Os países pelos quais passaram desmanchavam-se em elogios aos artistas, em especial à brasileira que, entre suas obras, havia conseguido capturar e por em tela os mistérios de um olhar esmeralda. Quando perguntaram quem seria a dona de tão bem traçado olhar, sua resposta foi a mais simples possível.



-Não sei. Apenas sonhei.



E era intrigante a perfeição daquele olhar. Dizem que os olhos são a janela da alma e se assim é verdade, Giuliana poderia certamente "ler almas". Laura via a felicidade nos olhos de sua esposa e podia sentir que ela estava realizando-se profissionalmente. Aumentou sua visibilidade, passou a ser requisitada em alguns eventos do meio artístico e criou sua agenda de contatos.

Homens e mulheres caíam aos seus pés quando viam-se nas orbes azuis e encantavam-se com as duas covinhas formadas pelo seu sorriso. Laura passou a acompanhá-la, mesmo não gostando. Se uma mulher se aproximava, mesmo que fosse a trabalho ou para elogiar seu talento, Laura segurava-a de forma que demonstrasse a indisponibilidade da outra para "aventuras de uma noite".

Seu ciúme havia evoluído consideravelmente, tornando-a uma pessoa desagradável e não quista. Os amigos de Giuliana passaram a evitar visitas e convites quando Laura se fazia presente. Aquela situação também passou a constranger a artista, que via-se dividida entre sua profissão e a esposa. As brigas que quase nunca aconteciam, passaram a ser frequentes. Os motivos eram variados. "A fulaninha que paquerava sua esposa", "uma pintora atirada", "aqueles seus fãs que não respeitam os limites".

Por mais que dissesse que a esposa era a única pessoa pela qual seus olhos procuravam, Laura insistia em sua desconfiança. A gota d'água calhou no dia em que Giuliana havia reencontrado uma amiga dos tempos do colégio que haviam perdido o contato. Sentaram em uma lanchonete para um refresco enquanto a italiana esperava a esposa. Atualizavam-se sobre o seguimento de suas vidas. Só deram-se conta do avançado das horas quando a moça recebeu o impacto de um copo com água em sua face. Giuliana espantou-se com a atitude agressiva da mulher, enquanto Laura tentava bater na moça inocente. Após conseguir controlar sua esposa, obrigou-a a ficar sentada enquanto auxiliava sua amiga a enxugar-se no banheiro.



-Mil perdões, Vanessa. Não sei informar o motivo da hiseria dela.
-Amiga, leve sua esposa ao psicólogo. Ciúmes não é prova de amor, é doença. Precisa de tratamento antes que seja tarde e transforme-se em algo pior.



Ao voltar para a lanchonete, Giuliana arrastou sua esposa para casa. Laura foi todo o tempo em silêncio. Sabia que estava errada. Entraram em casa em meio a uma discussão acalorada onde palavras e frases ditas machucaram e, para evitar mais dissabores, ouviu-se um ultimato.



-Ou você procura um psicólogo e trata esse ciúme infundado ou nosso casamento termina agora.
-Não. Você não pode me deixar. Eu te amo, Giu.
-Eu também te amo, mas não posso conviver com uma pessoa que, ao me ver com outra, fará uma cena ridícula.
-Tudo bem. Se isso salvará nosso casamento, farei como pede.



Nos meses seguintes as coisas pareciam melhorar. Laura fazia terapia duas vezes por semana e o casamento parecia ter voltado à harmonia dos primeiros anos. No dia em que completavam dez anos de casadas, Giuliana revelou-lhe um desejo há muito guardado.



-Eu gostaria de ter um filho.

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