O Amanhã a Deus Pertence - Capitulo XIV

14 - A Culpa é de nós mesmos




Às vezes é preciso de um incentivo para que tudo mude. Seja para o bem ou para o mal, sem o incentivo certo, nada acontece. E era justamente nessa lógica que Giuliana pensava enquanto dirigia lentamente em direção a sua casa.

Primeiro a oportunidade de um curso em Portugal onde teve conhecimento da existência da poesia Tayó'Nilè. Sim, porque ela era a poesia em si. Depois o quadro que lhe abriu as portas do mundo das artes quando começava a pensar em desistir. Terceiro, o encontro inusitado com uma moça em uma loja de doces. Quarto, o concurso criado por sua autora preferida, o sonho e o poema dedicado aos olhos daquela moça que mal lhe saiam da cabeça. Quinto, o contrato com uma escritora que veio a descobrir ser a moça da loja. Sexto, a vitória no concurso e o jantar onde finalmente iria ter a honra de estar ao lado dela.

E qual não foi a surpresa ao descobrir que no fim todas elas eram apenas uma pessoa. Ana Tayó’Nilè Bragança de Souza. A mulher que estava mexendo com suas convicções e aflorando um desejo já tão conhecido dos que se encantam ao encontrar uma joia de raro valor.

Giuliana desligou o carro e retirou suas pastas, portfólios e o computador do carro trancando-o. Entrou em casa sendo recepcionada por silêncio e escuridão. Ótimos companheiros quando precisa concentrar-se no trabalho. Levou tudo para o escritório e subiu ao quarto deparando-se com a esposa em posição fetal enrolada apenas em um fino lençol.

Aproximou-se com o intuito de cobri-la com o edredom e percebeu um rastro molhado em seu rosto. Lágrimas. O nariz avermelhado entregou que a outra havia chorado antes de dormir. Seu coração apertou. Embora amasse Laura, sabia não mais ser como no início anos atrás.

Nos primeiros anos de casadas exalavam amor, confiança, respeito, companheirismo. Eram causadoras de inveja em alguns amigos, mas nos últimos cinco anos depois da sua viagem à Itália percebeu mudanças a princípio discretas no comportamento da esposa. Achou que fosse resquício das rusgas, mas o passar do tempo só fez aumentar tornando-se obsessão, desconfiança. Como se a mulher tivesse medo de ser traída ou trocada.

Aquilo passou a incomodá-la, pois não havia mais a liberdade de conversar com as pessoas sem que houvesse um cão de guarda em suas costas. As noites de amor foram diminuindo conforme as brigas tomaram uma crescente ao ponto de algumas vezes optar pelo quarto de hóspedes.

Tentação existia aos montes no meio profissional que convivia. Homens e mulheres dispostos a muito por uma conversa privada e não foram poucos os convites dos quais gentilmente declinava. Não macularia sua relação, por mais conturbada que estivesse. Quando a ultimou a fazer o tratamento viu melhoras. Viu a moça por quem havia se apaixonado anos atrás ressurgir e pensou que poderiam voltar a harmonia. E assim foi até as últimas semanas, onde parecia que o tratamento não havia surtido mais o efeito esperado.

Veio então a ideia do filho. Sempre gostou de criança e uma em sua casa para chamar de sua não era mau. Depois de muito insistir, Laura aceitou. Mas agora pensava se havia mesmo feito o certo ao deixar que a esposa carregasse o ônus do relacionamento sem tentar mudar a si. Será que essa criança realmente resolveria os problemas do casal ou seria mais um?

Eram perguntas e mais perguntas na consciência da mulher. E essa mulher que claramente abalou suas estruturas até então sólidas. O toque, o timbre da voz, o cheiro e os flertes. A despedida? Com sabor de quero mais. Deitou-se com todos os questionamentos e a lembrança desse jantar memorável. Sentiu a mulher virar-se em sua direção aconchegando-se em seu corpo. Dormiu.


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Ana chegou em casa entre a euforia, a excitação e o medo. Euforia da descoberta acerca de sua leitora, excitação pelos flertes e provocações correspondidas e o medo. Do que começava a sentir, da decepção, do fato dela ser casada e querer uma aventura ou ser o pivô das brigas e separação do casal.

Nunca quis esse papel para si. A outra, amante, ladra de esposa, destruidora de lares e tantos outros adjetivos pejorativos e nada agradáveis de se receber. Não pensaria nisso por hora. Precisava viajar a Portugal e lá ordenaria o seu pensar. Depois de um longo e maravilhoso banho, Ana deitou-se para dormir.

O sol iluminava a janela de seu quarto refletindo na parede as diversas cores dos vitrais que coloriam sua parede. Ana já havia acordado a muito e pensava no pós jantar. Pensava também que aproveitaria o feriado que aproximava-se para rever sua terra natal. Sentia saudades de seu pequeno casebre e alguns amigos. Os ares lusitanos certamente lhe dariam frescor nas ideias.
Escolheu aleatoriamente uma música em seu celular e seguiu para o banho. Já estava para entrar no chuveiro quando ouviu aquela inconfundível voz em uma melodia que muito de si trazia. Tarja Turunen interpretava a música Innocence em seu timbre enrouquecido.


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Quando Giuliana despertou Laura já a esperava sentada na cabeceira da cama. Convenceu o médico mediante uma excelente quantia a ajudá-la com sua farsa e agora era dar segmento. Não havia como voltar atrás nesse momento. Olhava a esposa dormindo como um anjo e não lembrava de tê-la visto chegar.

Aguardou até pouco mais da meia noite até convencer-se de que ela não mais viria. Decerto a alcova da amante devia ser quente e confortável ao ponto dela perder-se nas horas em meio aos lençóis.

Em sua cama chorou. Pelo amor antigo, pelos erros cometidos e suas consequências e agora pela eminente perda de sua mulher para outra. Giuliana abriu os olhos e viu o sorriso doce que tanto amava na esposa.

-Há quanto tempo está acordada?
-O suficiente.
-Precisamos conversar.

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