Nossa Forma de Amar - Capitulo IV


4 – Quem Não Pode Com Mandinga Não Carrega Patuá


Quando era pequena, Lucimara amava ir para a casa de sua avó Anália. Os quitutes que ela fazia para vender na pequena cidade eram famosos e deliciosos. Cocada de coco, amendoim e castanha. Paçoca, bolinho de tapioca com canela e cuscuz de carimã eram as iguarias preparadas por aquela senhora de estatura mediana, negra, descendente de africanos que herdara alem dos traços físicos a religiosidade e uma herança espiritual.

De segunda a quinta feira, a senhora com a ajuda de algumas jovens que moravam nas redondezas e gostavam de aprender a arte da culinária faziam os doces encomendados pelas senhoras da cidade e alguns a mais para passar o tabuleiro na rua.

Na primeira e ultima sexta feira do mês, o sitio onde Anália morava enchia-se com os amigos mais chegados e uns poucos conhecidos que durante o dia ajeitavam em uma tenda improvisada algumas cadeiras, as mulheres iam pra cozinha fazer mingau e pão de forno para servir aos convidados a noite e os homens cuidavam da segurança.

À noite o terreiro era iluminado a base de candeeiros e algumas lâmpadas. Os atabaques ficavam em um pequeno espaço apropriado com um banco de madeira adaptado para ser o suporte deles. Quando a lua chegava ao alto do céu a sessão do caboclo Lua Branca começava. Enquanto os caboclos cantavam seus sambas e rezas o pequeno publico aplaudia, um ou outro conversava brevemente com um caboclo e outros lanchavam.

Porém essa noite foi diferente das demais. Quando todos os caboclos já tinham ido para Aruanda sua terra natal dentro do mundo espiritual, Lua Branca pediu que parassem o couro. Com os passos lentos caminhou em direção a Cidália e Lucimara, mãe e filha. Pegou a menina de 7 anos no colo e foi ao centro do terreiro, onde ficava a cadeira de Anália. Em seu linguajar embolado começou a falar.


-“É tempo do novo. Os véio num dão mais conta de tudo, a matéria cansa do peso do mundo. De fazer o respondedor quando os homi da lei vem bater na porteira mandano parar o couro. E quando ela fechá os zói presse mundo vai ter arguem aqui, pra cumprir o missão. Eu, caboclo Lua Branca da ardeia do Juremá, filho de Lemba e Kaiá, sento a menina no lugar onde deve de ficá.”


Dizendo isso, colocou a menina Lucimara sentada no trono que naquele instante ainda pertencia a Anália. A sucessora do terreiro já tinha sido anunciada. Quando dona Anália acordou da incorporação e foi levada ao centro do barracão viu seu bibelô empossado em seu trono. Dos olhos da senhora verteram lagrimas. Sabia que seu tempo entre seus entes queridos estava próximo do seu fim.

A iniciação da pequena na religião foi feita entre cantos e rezas. Poucos foram os convidados. Depois de um mês recolhida no terreiro nascia uma nova Lucimara, ciente da responsabilidade que a aguardava. A partir deste momento foram sete anos de intenso aprendizado e anotações de tudo que ela deveria lembrar. O resto o tempo ensinaria.

Quando completou 15 anos, sua querida avó deixou este mundo. Sua passagem tranquila, dormindo após um dia de preparo dos tão famosos quitutes da Anália. A pequena cidade parou para o cortejo fúnebre passar. Entre cantos ritualísticos os conhecidos despediam-se da matéria, pois o espírito era imortal. Cada um que teve um pouco de convívio lembraria-se dos bons momentos quando a saudade apertasse no peito.

A casa foi fechada. Um ano e alguns meses se passaram até o dia de reabri-la. Com a jovem Lucimara, em seus 16 anos assumindo o posto de Mametu Nkisi do Unzó Lembaranganga. Como já era de se esperar, alguns filhos da casa não gostaram de ser orientados por uma pessoa tão jovem, mas tão logo começaram as funções Mara como os íntimos a chamavam mostrou que o pulso firme e a sabedoria estavam no sangue.

Quando completou 19 anos, Mara teve um sonho com sua avó e neste sonho ela dizia para ela fazer uma viagem, que a oportunidade iria aparecer. Ela deveria ir até onde lhe fosse permitido e lá ela descobriria sua verdadeira missão. Passaram-se alguns meses e Mara recebeu um convite para ir conhecer uma associação de religiões de matriz africana. Lembrando-se do sonho, aceitou. Deixou seu tio Rodolfo, Tata Ndenge da casa em seu lugar e partiu.

A Associação Omode Ty Olorun ficava na capital, em um bairro chamado Água de Meninos. Quando chegou nesse lugar Lucimara se encantou. Tinham tudo referente aos segmentos do candomblé, livros de ata contendo historias dos antepassados, os primeiros terreiros fundados no país entre fotos e outros tipos de arquivos. Em conversa com os integrantes ficou acertado de ela passar um pequeno período conhecendo o lugar.

Quando estavam se dirigindo para a casa de Rômulo, presidente da associação passaram em frente a um lote de terreno cercado e com uma placa de vende-se e um senhor na entrada. Pediu que parassem o carro e desceu. Pediu ao senhor para olhar o terreno. Enquanto andava pelo terreno lembrava-se da sua infância quando sua avó contava a historia de como comprou o sitio onde morava. Ao parar no centro do terreno sentiu como se água brotasse dos seus pés enraizando-a aquele lugar. Fechou os olhos e ouviu a voz do caboclo Lua Branca pronunciar a palavra Missão. Era isto. Sua missão estava naquela cidade, especificamente naquele lugar.

Comprou o terreno e desenhou a planta de como seria construído. Deixou seu amigo Rômulo encarregado de supervisionar enquanto voltava ao interior para deixar resoluções. Passou a liderança oficialmente para seu tio contando a todos do sonho que tivera e do que aconteceu na capital.

Após um mês organizando a situação do terreiro, Lucimara mudou-se para a capital. Acompanhou a construção do seu novo lar de perto. Nesse período ficou muito próxima de Rômulo. Quando terminou a construção novamente sonhou com sua vó.


Sentadas em uma pedra na beira de uma cachoeira conversavam.
-minha filha, quando você for dar o nome da sua casa lembre-se da correnteza dessas águas. Parecem calmas como acalento de mãe, mas quando preciso se tornam fortes, intempestivas. Assim é Iemanjá, a doce mãe que acolhe os filhos e transforma-se em fera para defendê-los.”


Acordou sobressaltada. O coração disparava e precisou ir a cozinha beber água para que acalmasse seus nervos. Rômulo sentiu sua falta na cama e foi procura-la pela casa. Chegou a cozinha e ela estava sentada na cadeira pensativa.


-o que houve querida?
-sonhei com minha vó.
-o que ela queria? – perguntou sentando-se.
-me dar o nome da casa.
-e qual seria?
-Ilê Asé Omi Iemanjá, Casa de Força Água de Iemanjá.
-lindo nome.
-lindo foi o sonho. Vamos dormir, pois amanhã o dia será cheio.


No dia seguinte seria a inauguração do terreiro.  Os filhos e amigos da casa do interior vieram para ajudar. E assim começou a historia da Yalorixá Lucimara naquela cidade. Em poucos anos, ela e Rômulo casaram-se. Após sete anos quando Mara estava grávida de Milena no oitavo mês teve um sonho com uma mulher morena de longos cabelos negros na beira da praia embalando uma criança.

Milena nasceu com um sinal nas costas um desenho em formato de estrela do mar. Cresceu como uma criança qualquer. Saudável e arteira, mas Milena ao contrario das outras crianças já tinha uma noção da sua condição religiosa. Já havia sentido o preconceito na pele quando não quiseram convida-la para um aniversario alegando que ela era filha de macumbeiros e não poderia ir.

Milena chorou no colo da mãe. Eram lagrimas sofridas, pois uma criança não tinha consciência de como as palavras poderiam machucar. Depois desse dia, sua mãe organizou uma festa pra ela em um espaço com vários brinquedos e tudo que criança gosta. Foram confeccionados convites para serem distribuídos entre os coleguinhas de escola e alguns vizinhos do bairro.

Quando o menino que a havia dito tão duras palavras foi pedir-lhe um convite todos ficaram apreensivos com a resposta de Milena e esta surpreendeu a todos.


-vou te dar um convite. Porque não sou má como você foi comigo.


Este coleguinha agradeceu envergonhado e pediu-lhe desculpas. Meia hora depois já estavam brincando como se nada tivesse ocorrido. Quando Milena tinha 10 anos, Dalila nasceu e ambas foram iniciadas na religião. Lucimara lembrou-se do sonho durante a gravidez de Lena. No dia da apresentação de sua filha ao mundo renascida eis a surpresa. O mesmo orixá que regia a sua vida regia também a vida de Milena.

Aos 14 anos, Milena deu o primeiro beijo em uma garota e contou pra sua mãe. Por ser Zeladora de orixás muitas pessoas lhe procuravam. Lucimara tinha filhos gays e héteros e sabia que a única coisa que os diferenciavam era apenas o fato de com quem ambos dormiam. Seu caráter não declinava tampouco se tornava duvidoso.

Quando estava na faculdade conheceu Sandra. Loira, olhos castanhos, corpo de curvas sensuais e que sabia usa-las. Foi atração a primeira vista. Sexo selvagem e apenas isso. Milena sabia ser cobiçada por onde passava. Também quem não gostaria de ter um breve affair com aquela morena de 1,70 cm, pele morena bronzeada, olhos verdes como a água do mar em calmaria, cabelos negros ondulados que param na cintura, perfume de jasmim e uma voz tão doce e suave quanto o canto da sereia.

Durou tempo suficiente para Milena aprender um pouco mais sobre a arte do prazer. Já formada em publicidade e propaganda e trabalhando em um dos escritórios mais famosos da cidade, Milena estava em um evento representando o escritório quando viu uma mulata aproximar-se.


-posso me sentar aqui? – perguntou com um olhar felino que escondia outras intenções.
-deve. – sorriu Milena em seu jeito sedutor.
-me chamo Simone.
-Milena, prazer.
-o prazer será nosso.


Conversaram, ou melhor, flertaram durante o evento. E após seu termino foram comemorar a duas em um quarto de motel. Dois meses depois, Lucimara conheceu a pessoa que momentaneamente estava com sua filha. Sua intuição dizia que não iria acabar bem. O namoro delas era uma intensa batalha para ver quem comandava. Depois de dois anos entre brigas e voltas, Milena recebeu uma proposta da empresa para fazer um curso rápido de especialização em São Paulo. Era o pretexto que precisava. Terminou seu namoro e embarcou. Alguns meses longe, fariam com que Simone a esquecesse.

Comentários

  1. Parabens pela excelente escrita descritiva acerca de tema interessante. A religiao nunca se faz presente nos contos. Voce eh coragosa e muito talentosa. Que nao lhe falte inspiração.
    Abraço
    Sil

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    Respostas
    1. Obrigada!
      Realmente as pessoas procuram não adentrar seja por medo de polemicas e represalias ou simplesmente falta de vontade.
      Sou corajosa não, foi as circunstancias que me levaram a esse tema.
      Obrigada novamente.
      Abraços.

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