Conto - Destinação
Algumas pessoas nascem
destinadas a encontrarem sua outra metade, sua complementação. Umas as
encontram e outras passam a vida inteira a procurar. E se alguém tivesse inúmeras
oportunidades de encontrá-la seria possível perde-la tantas vezes?
Ana Luz e Tâmara tinham muito em comum. A começar pelo
nascimento. Ambas nasceram em um dia qualquer de Março do ano de 1975, na mesma
maternidade na pequena cidade de São Judas Tadeu no interior do sertão
nordestino.
Na ala dos berçários puseram os bebes lado a lado. Ana Luz
dormia com os pequenos olhos semicerrados com o corpo virado na direção oposto
a Tâmara. Que por sua vez estava bem desperta e sorridente. Gesticulando com
seus pequenos bracinhos. Os tios e avós olhavam sua peraltice pelo vidro na ala
infantil.
Passados três anos, a família de Ana Luz mudou-se para uma
casa que estava sendo vendida exatamente ao lado da casa da pequena Tâmara.
Cresceram próximas, estudaram nas mesmas escolas, na mesma sala e não se
notavam.
Ana Luz era tímida, silenciosa, delicada, sensível ao
extremo. Ela era observadora e preferia sempre ouvir a falar. Sentia-se
diferente quando se comparava com as moças de sua idade. Sua maneira de ser não
atraia os ditos populares e até aquele momento ela não sentia falta. Em todo
seu período acadêmico escolar fez apenas um amigo que perdurou por toda sua
vida, Sebastião. Ou simplesmente Tião.
Tião era um garoto que poderia ser considerado popular.
Conseguia interagir entre os grupos escolares com facilidade e de uma
docilidade impar conseguiu ter a atenção da Analú. A única pessoa a quem era
permitido chamá-la assim.
Tâmara era a garota que todos os meninos queriam “ficar”.
Bonita, inteligente, divertida. Mas por trás dos sorrisos aparentemente alegres
escondiam uma tristeza profunda. Solidão, medo, indiferença. Eram sentimentos e
sensações que permeavam em seu intimo.
Deixava-se envolver em busca de alento e segurança. De
alguém que lhe dissesse “Ei, estou aqui. você não esta só nesse mundo.”, mas
tudo que encontrava era mais um querendo exibe-la como troféu.
Ao completar dezenove anos Tâmara teve sua pior perda. Sua
mãe faleceu em um acidente quando voltava para a pequena cidade. Agora eram
apenas ela e o pai. Um senhor na faixa dos quarenta anos que ao perder sua
esposa afundou-se na bebida como válvula de escape.
Transformando-se. De pai zeloso e marido dedicado passou a
ser um homem rude, na maior parte do tempo alcoolizado e violento. Em um dia
nublado, sentada embaixo da marquise do colégio a jovem conheceu Tião. Que foi
um amigo valioso, confidente e compreensivo. Deu-lhe o suporte necessário.
Tornaram-se amigos.
Tião nos anos que se seguiram sempre disse a ambas que tinha
vontade de apresentá-las e varias ocasiões apareceram. Os aniversários do rapaz
nos quais Analú declinava do convite por sentir-se sufocado em meio a tantas
pessoas olhando-a. os saraus que o rapaz fazia mensalmente para o clube de
literatura e alguns simpatizantes e quem os recusava era Tâmara dizendo que não
se enquadraria. E assim a amizade permanecia.
Ana Luz sentiu a necessidade de explorar os horizontes que
poderiam existir. Saiu da pequena cidade em direção ao mundo. Conheceu os
lugares que sonhos, fez com um pequeno esforço o curso que desejava para então
por um antigo sonho em pratica. Escrever e lançar seu livro. A pequena flor
Analú, como a chamava carinhosamente Tião, estava desabrochando para transformar-se
em uma mulher segura com relação a sua sexualidade e com um toque de
sensibilidade.
Tâmara não teve a mesma sorte. Continuou na cidade após
concluir o colegial. Procurou emprego em alguns estabelecimentos até encontrar
vaga em um mercado como empacotadora. Alguém precisaria por dinheiro em casa já
que seu pai vivia no bar.
Com o tempo ele começou a abrir a porta de seu quarto
enquanto dormia, alisava seu corpo com olhar lascivo. A jovem evitava ao Maximo
ficar muito tempo só com ele em casa por medo do que viesse a acontecer. Um dia
em uma conversa com Tião, o moço disse-lhe que se precisasse sua casa estaria
aberta.
Com o tempo o pai da jovem pareceu ter esquecido-a, o que a
tranquilizou. Mas em uma noite de tempestade na pequena cidade tudo mudou. Já
passava das 22h30min e seu pai ainda não havia chegado. As luzes começaram a
piscar e ouviu-se ao longe um estouro. A casa ficou as escuras. Tâmara subiu
para seu quarto esperando que seu pai pelo menos aparecesse e nessa espera
adormeceu.
Acordou sobressaltada sentindo um peso atípico em sua cama,
era ele. Havia arriado as calças e falava coisas incompreensíveis enquanto
tentava penetrá-la totalmente embriagado. Com esforço a jovem conseguiu se
soltar e correu mesmo com toda aquela chuva e escuridão tentando achar a casa
de seu amigo.
Ao contar o que aconteceu, Tião não negou abrigo. Passado a
tempestade e a normalização da cidade foram prestar queixa. Uma filha acusando
o pai de um crime hediondo causou a revolta da população que por pouco não fez
justiça à moda antiga.
Após esse episodio a jovem Tâmara tão segura de si e
extrovertida passou a evitar os homens confiando apenas em um, Tião. A amizade
deles aos poucos evoluiu para uma relação na qual ambos satisfaziam suas
necessidades sem precisar cobranças ou afirmações. Tâmara engravidou e
decidiram formalizar a união com uma cerimônia no cartório e uma recepção para
os amigos. Tião enviou um convite para Ana, mas esta estava lançando seu
primeiro livro na capital paulistana e não pode comparecer enviando o presente.
Nove meses depois nascia um lindo menino que recebeu o nome
de Luiz, em homenagem ao rei do baião e a sua estimada amiga. Que anualmente se
viam na nova residência da outra. Luiz adorava a “tia Lua” e cada vez que
retornavam a cidade nas mãos do garoto tinha um presente. Ora brinquedo, ora
livros.
Com o tempo Tâmara quis conhecer essa mulher que encantara
seu filho e tinha a devoção do marido. Não era apenas curiosidade, em seu
intimo sentia a necessidade de ver seu rosto. Não era ciúmes de esposa,pois não
amava seu marido como um homem ama uma mulher e ambos sabiam disso. Não sabia
explicar, mas precisava vê-la.
Infelizmente essa circunstancia se deu após o falecimento de
Tião em um domingo em família. Na final do campeonato estadual onde jogava o
time do seu coração. Estava em casa com alguns colegas de trabalho e suas
famílias assistindo a derradeira partida. Ao comemorar a vitoria do seu time sentiu
uma pontada no peito, ficou quieto. Saiu em direção ao balanço na área externa
e pediu que seu filho chamasse a esposa. Quando Tâmara chegou encontrou o
marido sentado com a mão no peito, gritou para que chamassem o socorro.
Enquanto aguardava ele cochichou algo em seu ouvido, deu um beijo em sua testa
e encostou a cabeça na grade do brinquedo.
Quando o socorro chegou já era tarde, Sebastião jazia morto.
Levaram o corpo ao Instituto Médico Legal e com ajuda Tâmara conseguiu avisar a
todos dessa partida inesperada. Ana Luz estava em outro estado e soube com
atraso, mas voltou imediatamente àquela cidade que lhe trazia recordações do
amigo.
No enterro muitos conhecidos de uma vida breve, porem feliz.
O único comentário era sobre a expectativa da chegada de Ana Luz, a amiga. No
coração de Tâmara uma bateria de escola de samba aquecia para começar o desfile
na avenida. A todo instante vinha um dar suas condolências ou comentar que ele
era um homem como poucos. Com o avançar das horas o cortejo fúnebre saiu da
capela em direção ao cemitério.
Ana Luz entrava na cidade dirigindo seu carro. Um Renault Logan do ano, na cor preta.
Olhou o relógio e imaginou que o cortejo já houvesse saído. Seguiu para o
cemitério. As vezes olhava no retrovisor e pensava que aquela jovem de pele
bronzeada do sol, gordinha desde a infância e extremamente tímida jamais
sonharia em tornar-se uma escritora conhecida no meio literário e que estaria
voltando depois de anos a cidade de seu nascimento, pena que por um motivo
triste.
Parou o carro em frente ao cemitério e viu algumas pessoas
já se encaminhando para a saída. Algumas a olhavam com curiosidade, outras com
certa inveja. Seguiu até a lapide do seu amigo. Apenas uma mulher continuava
parada olhando fixamente para aquele lugar. Pensou que não se lembrava de
alguém como ela.
Tâmara sentiu-se observada. Lentamente virou deparando-se
com os olhos negros que lhe fitavam. Seu coração/bateria já disparava a certo
tempo. Os pares de olhos se analisavam. Sem nada dizer, Ana aproximou-se da
lápide depositando uma flor que trazia na mão em seguida abraçando a viúva de
seu amigo.
Um abraço, não. O abraço. Os corpos encaixaram-se, as almas
acalentaram-se. Sentiram-se completas pela primeira vez em apenas um abraço.
Separaram-se. Ainda sem nada dizer deram-se as mãos e saíram dali a passos
lentos. Ambas não olharam para trás. Se olhassem veriam uma luz emanar da
pequena foto. Tião seguia o caminho da luz, sua missão havia acabado de ser
cumprida nesse plano existencial.
Ana conduziu a jovem ao seu carro acomodando-a. em seguida
dirigiu para a residência do casal onde quando chegaram foi convidada a entrar.
Dentro da casa estava uma senhora simpática que a ajudava nos afazeres,mas
naquele dia havia sido incumbida de cuidar do pequeno Luiz.
Este sorriu ao ver a mãe entrar acompanhada e correu para os
braços da “tia Lua”. Após brincar um pouco com ele, as mulheres conversaram.
Tâmara a convidou para pernoitar na casa, já que os poucos hotéis estavam
cheios. Convite aceito para a felicidade do pequeno. Nos dias que se seguiram,
as mulheres alternavam entre o encantamento e a perplexidade ao descobrirem que
em todo o tempo que Ana permaneceu na cidade tiveram inúmeras ocasiões onde
poderiam ter se conhecido com antecedência.
Ana Luz retornou para sua residência uma semana depois.
Aproveitou o tempo que ficou na cidade para conhecer melhor aquela que por
alguns anos dividiu uma vida com seu leal amigo. Entendeu o porquê de o homem
insistir para que se conhecessem. Eram parecidas em muitos aspectos.
Ao adentrar seu lar, nada mais era como antes. Não haveria
mais visitas inesperadas e prazerosas por parte daquele homem de aparência rude
e coração doce carregando sua miniatura embaixo do braço, como costumava
brincar. A saudade já lhe doía o peito. Decidiu viajar um tempo arrumando as
malas e reservando passagem para um destino nacional, porem inédito para ela.
As semanas passaram e em um domingo recebeu um telefonema.
Tâmara dizia ter algo deixado pelo marido que lhe pertencia. Deu seu endereço e
aguardou. Ficara curiosa com esse conteúdo. Dois dias depois, a mulher tocava
sua campainha. A convidou a adentrar sua humilde residência e a fazer a refeição
com ela. Conversaram amenidades, mas a curiosidade de Ana falou mais alto.
Logo se encaminharam para o escritório. Após acomodarem-se,
Tâmara tirou de dentro de um saco plástico uma caixa de madeira pequena e
entregou a outra mulher. Ela sorriu ao ver a “caixinha dos segredos”. Abriram
vendo as inúmeras fotos dos amigos, cartas trocadas entre eles, alguns pequenos
objetos que julgavam importantes. A emoção roubou-lhe os sentidos fazendo com
que chorasse tal qual criança.
Sentiu aqueles braços cercarem seu corpo afagando suavemente
suas costas. Aos poucos aquele cheiro impar foi a acalmando. Seu rosto estava
no pescoço da moça virou-se e afastaram-se um pouco para olharem-se nos olhos.
Lentamente os rostos aproximavam-se e um beijo acontecia. Doce, suave, um beijo
de reencontro. Ao seu fim as mulheres retornaram ao abraço.
Um tempo depois a viúva anunciou sua partida, precisava
buscar seu filho. Prometeram-se uma conversa sobre aquele beijo. Outras semanas
passaram até que Ana decidisse que precisava daquela conversa. Novamente
dirigiu-se até aquela cidade indo direto para a casa da moça viúva.
Quem viu sua chegada foi Luiz que não se cabia de contente
em ver sua tia novamente. Entraram conversando com o pequeno homem segurando
sua mão. Tâmara ao ver a mulher parada sorrindo amavelmente prende a respiração
por alguns instantes. Convida-a para o almoço em seguida Luiz é levado a
escolinha. Na volta sentam na sala. Ambas estão nervosas, mas Ana quebra o
silencio expondo o que ia em seu coração.
Tâmara revela o que se passara com ela desde a morte de sua
mãe até os dias atuais. Desnuda-se por completo e pede que aquela mulher em sua
frente faça parte de sua vida. A resposta de Ana é dada em forma de um beijo
tão doce quanto o primeiro. Um acordo é firmado de irem com calma para que Luiz
não se assuste com essa nova família que começava a se formar.
A primeira noite de amor do casal é regada a cuidados e
carinhos. O maior desejo de Ana é passar tudo o que sente para a outra através
dos toques e beijos. O desejo da outra é descobrir como é amar e ser amada
verdadeiramente. A comunhão dos corpos se faz em uma noite estrelada.
Alguns meses passam em que elas alternam entre o interior e
a capital. Ambas não conseguem imaginarem-se sem a outra e decidem morarem juntas.
Mas teriam de explicar toda a situação ao garoto. Após mais um jantar, as duas
o sentam no sofá e ensaiam dar a noticia. Luiz com a simplicidade e doçura de
uma criança diz entender que perdeu um pai, mas havia ganhado outra mãe.
As mulheres sorriem e o beijam. Nessa mesma noite enquanto o
casal dorme tranquilo no quarto, Tião aparece junto à cabeceira da cama e sorri
diante da cena. Duas almas gêmeas destinadas a encontrarem-se superaram todos
os empecilhos e agora ressonavam o sono do amor. A partir daquela noite elas
eram um ser único e aquela união, abençoada pelos anjos.
Fim
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