Nossa Forma de Amar - Capitulo XLVIII
48 – O Que Se Leva Nas Mãos
-Mãe, o almoço está pronto? – Dalila
perguntava ainda no corredor e ao chegar à cozinha percebeu que sua mãe estava pálida.
– a senhora esta se sentindo bem?
-Estou filha. Não se preocupe. O almoço está
pronto vai chamar seus irmãos.
A jovem ainda hesitou antes de sair da
cozinha, por fim decidiu fazer o que a mãe pediu. Ao chegar à área externa do
terreiro convocou todos para o almoço. Aos poucos a cozinha foi se enchendo de
risadas, conversas amenas, alegria e pessoas.
Lucimara os olhava com amor. Seus filhos
amados. Tão diferentes e iguais ao mesmo tempo. Quase todos que ali estavam haviam
encontrado a entrada de seu terreiro em um momento de dor sejam elas físicas ou
na alma.
Seu amor materno os curou e cada qual deu
seguimento em sua vida espiritual. Havia até aqueles que encontraram seu amado
por lá. Outros se soltaram das amarras de suas vidas medíocres e das imposições
impostas pela sociedade. Um bom exemplo dessa ruptura era uma moça chamada
Katiane.
Foi ao terreiro pela primeira vez levada
por uma amiga que prometeu ajudá-la a descobrir o que era aquela doença que lhe
atormentava desde a juventude e nenhum médico ainda havia conseguido descobrir
sua causa.
Enquanto conversavam com Lucimara na
varanda a jovem começou a sentir seu corpo fraquejar e os olhos embaçarem.
Quando despertou estava deitada em uma das arquibancadas do salão. Sua amiga
estava amparando sua cabeça, Lucimara segurava um caneco com um liquido que não
sabia precisar sua cor e dois rapazes que ela deduziu ser quem a carregou para
dentro.
Lucimara pediu para que voltassem no dia
seguinte e a Katiane trouxesse uma muda de roupa. Por um motivo desconhecido a
jovem não contestou. Assim que saíram Lucimara deu a Dalila a incumbência de
organizar um ebó* emergencial. A “doença” que acometia a jovem era fruto
da influência de um espírito sem luz e aos olhos da zeladora alguém havia
preparado um trabalho e não se sabia por qual motivo a atingida foi a jovem.
No dia seguinte pela manhã a moça batia
palmas em frente a casa. Um rapaz a conduziu até onde Dalila e sua mãe
aguardavam com mais algumas pessoas. A mulher mais velha explicou resumidamente
o que aconteceria. Assim que a limpeza começou a ser feita a jovem sentiu seu
corpo pesar e desmaiou quase caindo se não fosse à agilidade dos ogans.
Nesse instante gritos ecoaram pelo terreiro
como raios cortando o céu. Oyá Igbale*, Senhora dos Eguns* se
fazia presente enquanto a limpeza era concluída e a jovem recobrava sua
consciência. Foi conduzida por uma das ekedjis ao banheiro onde os banhos a
aguardavam.
O carrego* saiu sendo levado pelas Oyás
incorporadas em suas filhas e depois de deixado na porteira gritavam e faziam
gestos com as mãos como se espantassem algo invisível aos olhos humanos.
Lucimara preparava a mesa para o jogo de
búzios enquanto Dalila auxiliava a jovem. Depois de banhada e vestida, foi
incensada e conduzida por Dalila até a sala reservada para jogar onde estava
sua amiga e Lucimara.
Algumas caídas de búzios depois já se sabia
o motivo da tal doença. O pai da moça havia se engraçado com uma mulher de
reputação duvidosa prometendo separar-se da esposa para fugirem e casarem, mas
eram promessas vazias.
O homem nunca teve tal intenção. A moça era
apenas mais uma de suas conquistas, seu troféu e quando a tal mulher descobriu
ter sido ludibriada prometeu fazer da vida do homem um inferno. Em uma das
ultimas vezes que estiveram juntos ela cortou uma mecha de seu cabelo e levou
para um individuo que prometia amarrações de amor e trazia o ser amado.
O homem fez o trabalho e deu uma serie de
instruções a mulher para que seguisse a risca. Na mesma semana o homem chegou
em casa embriagado e em meio a uma discussão agrediu a esposa. Aquela foi à
primeira de muitas outras que viriam.
Passou a chegar a casa após o trabalho cada
vez mais tarde, isso quando aparecia. Por vezes levava semanas sumido até que a
mulher se desesperasse ao ponto de pensar registrar uma queixa pelo
desaparecimento do marido. Por vezes o homem voltava manso, parecendo o homem
com o qual havia se casado prometendo mudanças, parar a bebida e ser fiel.
As semanas transformaram-se em meses e os
meses em anos. Quando os desentendimentos começaram Katiane tinha apenas seis
anos e o desfecho ocorreu quando a jovem completava os treze com a morte de
forma horrenda do pai. Após todos esses episódios a moça começou a sentir seu
corpo lasso, excesso de sono, dores de cabeça intensas entre outros sintomas.
Procurou médicos que podiam atendê-la com a
pouca renda que tinham fruto do trabalho da mãe como passadeira de roupas nas
casas de algumas famílias de classe maior que a sua. Os médicos passavam exames
sofisticados que requeriam uma boa quantia e aos poucos se faziam, mas os
resultados eram sempre normais.
Katiane conheceu um rapaz na loja onde
trabalhava e encantaram-se mutuamente. O rapaz pediu sua mão em namoro e foi um
verdadeiro príncipe durante todo o namoro, noivado e até o dia do casamento.
Depois de alguns meses casados as divergências antes resolvidas com conversas
regadas a beijos passaram a evoluir ao ponto do marido ameaçar agredi-la. O
inferno que sua mãe viveu repetia-se.
Em confidencia a sua amiga Marta, esta
prometeu ajudá-la e estavam terminando a consulta com Lucimara. A zeladora
disse tudo o que a jovem precisaria fazer e convidou-a a ir a uma festa.
Algumas semanas depois a jovem retornava, desta vez sozinha para outra conversa
com a zeladora. Desabafou tudo que ia em seu coração caindo em prantos.
Lucimara abraçou-a e quando a jovem se acalmou pediu um copo de água.
Quem levou o pedido foi a moça Ivana, uma
de suas tantas filhas. Quando a moça ofereceu o como a jovem e esta sorveu todo
o liquido sem desviarem os olhares Lucimara entendeu que algo estava sendo
plantado. Katiane começou a frequentar o terreiro a fim de tornar-se uma das
filhas de santo da casa. A jovem começou a conviver com aquela diversidade de
pessoas e aos poucos descobria o que era ser querida e tratada com respeito.
O marido passou a tentar regular a saída da
esposa acusando-a de traição e deixando-a sob juramento de morte caso isso
ocorresse. Fez-se de vitima para os conhecidos e amigos para que os mesmos o
defendessem. Tentava seguir a mulher que sempre o despistava o deixando irado.
Em uma noite, véspera de função no terreiro
Katiane arrumava uma pequena sacola com mudas para os dois dias que pretendia
passar lá quando o homem chegou visivelmente embriagado tentando agredi-la. A
mulher trancou-se no banheiro e ligou para a amiga que logo chegou com o irmão
e um dos ogans do terreiro que era policial.
Tiraram a mulher da casa e a levaram para o
terreiro. Lucimara acolheu-a como uma mãe faria a uma filha e dias depois a
amiga levou suas roupas e objetos. O marido no começo ligava jurando mudanças e
ao fim da ligação eram ameaças.
Com o auxilio do advogado de Lucimara,
Katiane registrou uma ocorrência contra esse homem e pediu o divorcio. Depois
de tanto relutar o homem cedeu. Assinou sem maiores delongas dando a liberdade
a jovem. Ela iria recomeçar a viver e quem sabe por que não amar, já que
adorava perder-se no olhar nada misterioso de Ivana.
-Mãe, a senhora ouviu a pergunta? – ralhava
uma mulher aparentando beirar os quarenta anos.
-Não Katiane. Distrai pensando em algumas
coisas. Podem repetir? – a mulher perguntou afável.
-Podemos ver o Luca?
Lucimara levantou-se e seguiu pelo corredor
onde ficava o quarto onde Luis Carlos estava. O período do recolhimento dele
encerrava-se e seus irmãos queriam vê-lo. O rapaz já a esperava. Pela manhã ela
disse que o buscaria na hora do almoço para que ele se juntasse aos irmãos.
-Olá família. – Luis apareceu na soleira da
porta arrancando sorrisos e gritos eufóricos dos outros.
Falou com todos enquanto Lucimara apenas
olhava sorrindo. Dos seus olhos lágrimas vertiam. Seus filhos estavam
amadurecendo. Entendendo e aceitando suas responsabilidades e ela sentia que
sua missão estava quase encerrada. Quase.
Minidicionário:
Ebó= limpeza de corpo
Oyá Igbale= um dos títulos de
Oyá. Senhora que conduz os eguns.
Egun= espírito
desencarnado. Eles não são maus, fazem apenas o que lhe mandam fazer.
Carrego= limpeza depois de
passada no corpo de alguém.
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